Eu curto Legião
Ele largou seu país, sua família e seu nome para arriscar a vida na Legião Estrangeira
Uma brincadeira mudou a vida do paulistano Marcos Aristóteles Nascimento Santos. Ele era da aeronáutica e prestava serviço num quartel em Santana, São Paulo, quando um colegas desafiou: se vocês são soldados de verdade, se alistem na Legião Estrangeira. Lá, sim, a barra é pesada. E sacou um exemplar da edição 48 da Trip, de junho de 1996 (disponível no Google Books). Todos no batalhão leram a reportagem sobre o legionário Maurício Preuss. “Ficamos admirados com um brasileiro ter ido tão longe, e chocados ao ver que ele tinha apagado o passado e mudado de nome e nacionalidade. A foto com uma baioneta significava combate corpo a corpo. E era isso que eu queria.” Marcos leu o texto várias vezes.
Na reportagem, o também paulistano Maurício fez um relato sobre a preparação dos soldados da Legião, no qual deixa claro que os recrutas são tratados como bichos justamente para se tornarem bichos, cães ferozes prontos para matar ou morrer em nome da França. “Vi aqueles caras de boina verde, mal-encarados, tatuagens e pensei: ‘Tô entrando numa fria, só tem louco e bandido aqui’”, disse Maurício.
Mas nenhum obstáculo descrito por Maurício assustou Marcos. Aventura era o que ele buscava. Na época, mandou uma carta para o endereço da tropa em Paris, mas ficou sem resposta. Até que, numa manhã em 1998, quando estava na guarda da infantaria da aeronáutica, ao verificar a identificação de um visitante, levou um susto: “Ei, você é o cara da reportagem da Trip, o da Legião Estrangeira, não é?”.
Os dois engataram uma conversa e Maurício tentou desencorajar Marcos. Falou da mesmice no quartel, da vida dura, da pressão, das missões perigosas e que estava cansado daquela vida. Tanto que tinha dado baixa um mês antes. “Mas ele viu que não era fogo de palha e que eu queria mesmo ir para a Legião. Disse então que eu deveria me preparar para o pior e ir sozinho. Segundo ele, eu ia rezar para entrar e depois implorar pelo amor de Deus para sair.” Por fim, Maurício sugeriu que aprendesse francês e concluísse o serviço na aeronáutica antes de se alistar na Legião.
Marcos é o segundo de cinco filhos e foi o único que não quis fazer faculdade e seguiu carreira militar – contra a vontade da família. Na ditadura, seu pai, um técnico em eletrônica, e sua mãe, uma pedagoga, se envolveram com movimentos de esquerda e perderam amigos na luta armada. “Cresci ouvindo que os militares eram do mal, que eles torturam e matam”, conta o legionário. “Até hoje a minha família acha que eu sou doido.”
Policial da Rota
Em junho de 2002, após dar baixa na aeronáutica, Marcos se apresentou no quartel de Fort de Nogent, a meia hora de trem de Paris. A primeira pergunta que lhe fizeram foi se ele estava sendo procurado pela polícia. Depois, se era doido. De cada 25 candidatos, apenas um fica na Legião Estrangeira. Marcos teve a identidade trocada e virou Pedro Nunes, nascido em Fortaleza. Rasparam sua cabeça e o levaram para um alojamento com 500 homens. Foi informado de que, se sobrevivesse ali por quatro meses, estava dentro. Passou, então, a viver o terrível processo de seleção e de treinamento. Foi encaminhado para o cabo chefe, que mandou, em francês, que cada um dissesse seu número. Mas quase ninguém falava a língua, ficaram mudos. Irritado, o militar começou a dar socos na barriga de cada um até que começassem a contagem na língua desconhecida. Marcos levou porrada e achou que o agressor era “um alemão nazista”. De repente o mesmo oficial perguntou em francês se havia algum brasileiro ali. O sujeito era de São Paulo, ex-policial da Rota que fugiu do Brasil para não ser condenado pelo massacre do Carandiru, em 1993. Aconselhou: “Fica esperto, porra! Não vai fazer cagada aqui para eu passar vergonha como brasileiro!”. E o compatriota ficou. Acostumou-se com o fato de que o tratamento corriqueiro no treinamento é tapa na cara ou murro no estômago.
Acostumou-se com o tratamento no treinamento: tapa na cara ou murro no estômago
No processo de seleção, todo dia, às 17h, os homens ouviam a lista dos que seriam mandados embora. Quem ficava lavava latrina e fazia serviços gerais, enquanto era avaliado física e psicologicamente. Num dos testes, os recrutas deveriam acompanhar os movimentos do instrutor. Mal sentavam para almoçar, cansados e famintos e, em 2 min, o oficial levantava. Todos tinham que deixar a comida que mal tocaram. Tal sadismo continua por toda a carreira e ajuda a explicar o elevado índice de problemas mentais e de suicídios na Legião. Em missão, num batalhão de 800 homens, pelo menos um se mata por semana.
O brasileiro chegou a desertar por uns dias, quando um oficial o impediu de viajar nas férias. Mais tarde, reapresentou-se com mais quatro colegas e, num caso raro, depois de alguns dias na cadeia, foi perdoado. Na cadeia do quartel, além de trabalho forçado, corre-se 5 km por dia com uma mochila de 40 kg de pedras. “Todo mundo pega cadeia. É tanta regra que é impossível não violar uma.” Marcos não podia ter contato com o mundo externo. “Os franceses consideram os legionários mercenários, assassinos, e discriminam mesmo. Não deixam nem a gente entrar nos bares.” O sexo fica restrito aos prostíbulos que a Legião arma onde atua. Na África, por causa do alto índice de contaminação pelo HIV, as mulheres são previamente examinadas.
Quer matar quanto?
Como queria mesmo combater, Marcos “deu sorte”. Desde setembro de 2001, o mundo estava em guerra contra o terrorismo e ele seria útil. As missões no estrangeiro duram de quatro meses a dois anos e o soldo de 1,5 mil euros chega a triplicar. O brasileiro fez seu batismo de fogo como piloto de blindado ligeiro em janeiro de 2004, para impedir a tomada da capital da Costa do Marfim por rebeldes.
Falar quantos já matou é delicado para um legionário. “Ali não há ética nem valor de humanidade. Mata-se para impressionar o inimigo. Queríamos impedir que grupos armados entrassem em vilas e matassem pessoas.” Seu grupo, por exemplo, capturou um sujeito que tinha acabado de cortar a cabeça de uma menina de 12 anos e que estava prestes a matar o irmão dela, de 5 anos. Numa das missões, Marcos deparou com uma barricada formada por cabeças humanas que tinham sido arrancadas a facão. “Os africanos não entendem as fronteiras que os brancos fizeram para delimitar países. Compreendem, sim, que existem clãs e etnias inimigas que precisam ser destruídas.”
A parada seguinte foi em Kosovo, como parte das tropas da Otan, para defender um povo “que ninguém quer”. Mas foi no Afeganistão que ele aprendeu o quanto os africanos eram “fáceis” de ser combatidos em comparação com os guerrilheiros talibãs. Naquele país cumpriu três longas e arriscadas missões em 2004, 2006 e 2007. “Os afegãos desafiam limites. Por meio de celular, explodem um burro que carrega explosivos.”
Num batalhão de 800 homens em missão, pelo menos um se mata por semana
E por que lutar por outra nação? Marcos responde rápido: acredita lutar pela paz, para evitar um mal maior. “Me sinto útil porque a Legião atua para evitar ou acabar com guerras. Mas não sou ingênuo de não saber que, por trás, há interesses econômicos da França e de seus aliados.”
Sua nova missão começou em julho, no Djibouti, no norte da África, onde ficará por dois anos num lugar onde a temperatura pode chegar a 52o. Lá treina mil homens que lutarão na Costa do Marfim. Além dos confrontos nas zonas de combate, existe em Marcos uma outra guerra, consigo mesmo, para um dia deixar a Legião sem ter sucumbido à loucura que o cerca por todos os lados.