Rebite universitário

por Bianka Vieira
Trip #266

Enquanto as alterações que drogas como Stavigile, Venvanse e Ritalina causam não são claras, nas faculdades de medicina o fácil acesso cria uma cultura de uso indiscriminado

Livros abertos, caneta e papel a postos, um copo d’água e um comprimido. Esse é o ritual de Hélio*, 20 anos, em quase todas as vésperas de prova na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Na última, em um domingo em que já passava da meia-noite (a prova seria na manhã seguinte, às 8 horas), ele sentia a atenção redobrada graças ao Stavigile, um medicamento à base de modafinil, usado para tratar sonolência diurna. "Não senti nenhum poder especial, mas é realmente estimulante, como se tivesse tomado uma droguinha", conta. Adepto de um outro remédio controlado, a Ritalina, era a primeira vez que o estudante experimentava o modafinil, que encontrou entre as coisas do pai. "Achei bem melhor. Ritalina me tira a fome, dá taquicardia e não me parece muito constante."

“Muitas vezes, esse aluno tem três, quatro provas na mesma semana. Aí, só com Ritalina”
Tânia de Oliveira Valente, professora da UniRio

Não é a primeira, nem a segunda, nem a última vez que Hélio ou qualquer outro estudante de medicina se sujeita à automedicação e ao uso indiscriminado de substâncias com nomes como modafinil e metilfenidato em busca de uma turbinada no cérebro – prática conhecida pelo termo técnico "neuroaprimoramento". Para quem quer vestir o jaleco branco, os estimulantes surgem como solução muito antes da graduação. Caetano*, 24, que hoje está no quarto ano de medicina na Unicamp, chegou a ingerir um comprimido por dia enquanto estava no cursinho. "Com Ritalina, conseguia estudar por muito mais tempo sem ter fadiga física ou mental. E se queria estudar à noite, tomava mais meio", lembra. Nessa época, Caetano acordava com o remédio, usado para tratar transtorno de déficit de atenção, e só pegava no sono depois de dois ou três comprimidos de Dramin.

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Rita*, 20, também teve suas experiências com estimulantes antes de passar, este ano, no vestibular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – mas, no caso dela, o milagre vinha prescrito com outro nome: Venvanse. Com a atenção apurada e um raciocínio mais ágil, seu desempenho passou de mediano e oscilante para alto e constante. "Eu me sentia igual àquele cara do Sem limites [no filme, de 2011, um escritor interpretado por Bradley Cooper aumenta drasticamente sua inteligência com uma droga]". Ao contrário dos amigos de faculdade que também entraram na brisa do Venvanse ou da Ritalina no pré-vestibular, Rita não sentiu efeitos colaterais, como inibição de apetite, insônia, taquicardia ou dores de cabeça. Por outro lado, passou do manequim 44 ao 38 em apenas três meses. "É um medicamento muito caro e eu decidi que era hora de parar. Mas confesso que sinto muito a falta", diz.

Supermente

Há uma crença de que remédios como Stavigile, Venvanse, Provigil, Eranz, Concerta ou Ritalina – receitados para pessoas com déficit de atenção, hiperatividade, narcolepsia, entre outros diagnósticos – aumentem a produtividade e a atenção de quem precisa estudar ou trabalhar por horas a fio. Eles atuam no sistema nervoso central acelerando a liberação de hormônios como dopamina, noradrenalina e norepinefrina, que controlam, entre outros fatores, o humor, a ansiedade e o sono. O efeito não é nenhuma novidade. Anfetaminas são usadas com esse propósito há décadas, mas essas outras substâncias, muitas vezes chamadas de "drogas da inteligência", não são associadas diretamente ao "rebite" ou à "bolinha" de alguns anos atrás – embora Concerta e Ritalina, por exemplo, sejam compostos por metilfenidato, que é, exatamente, um tipo de anfetamina.

Apesar de serem medicamentos controlados, o acesso não é tão difícil. "Tomei Ritalina pela primeira vez no primeiro ano, quem me deu foi um veterano. Mas a gente pega receita em branco e carimbo com conhecidos", diz Jorge*, 24, que cursa o internato médico na Famerp. "Consegui Concerta com um amigo da faculdade que tinha comprado de uma amiga que tem TDAH [transtorno de déficit de atenção com hi­per­a­ti­vidade]. Usei durante cinco dias para estudar para uma prova", conta Nara*, 20, do segundo ano da Anhembi Morumbi.

“Sem o remédio, a pessoa acha que vai perder o foco. Muitos universitários chegam ao consultório com essa ideia”
Arthur Guerra, psiquiatra

Em todos os relatos ouvidos pela Trip, o caminho até o uso de psicoestimulantes legais é traçado pelo mesmo motivo: a pressão e a carga de estudos. Muitos desses estudantes são recém-chegados à vida adulta que entram na faculdade apegados ao nobre desejo de salvar vidas, mas tudo o que encontram são aulas pesadas e a necessidade de absorver um denso conteúdo em pouco tempo. "Esse cara vem de um dia em que ele ficou na enfermaria de manhã, teve aula teórica à tarde e na manhã seguinte terá prova. Além de não reprovar, precisa dar conta da competitividade", diz a profes­sora de psicologia médica Tânia de Oliveira Valente, da UniRio, que pesquisou a vida de estudantes de medicina em 2013. "As escolas médicas brasileiras precisam pensar num novo sistema de avaliação. Por que estudar um livro inteiro para uma prova no dia seguinte se daqui a três meses ele não lembrará nada? Muitas vezes, esse aluno tem três, quatro provas na mesma semana. Aí, só com Ritalina."

Saúde sem saúde

De acordo com um estudo publicado no American Journal of Preventine Medicine em 2015, os agentes de saúde – incluindo os estudantes – estão entre os três perfis de profissionais que mais se matam, atrás apenas de policiais e agricultores. Em abril, alguns estudantes da USP quase viraram estatística: num período de duas semanas, três alunos do quarto ano tentaram suicídio na véspera de uma prova de clínica médica. Segundo um residente do Hospital das Clínicas, àqueles casos já se somavam outros quatro, só do mês anterior.

Maria*, 24, é amiga e está na mesma turma de dois desses três alunos. Para ela, o incidente diz menos sobre um problema pontual – nesse caso, a prova – e mais sobre problemas anteriores, que aumentam com a evolução do curso. "As pessoas não se cuidam, e aqui a gente não consegue lidar com frustrações. A competitividade é muito grande", diz Maria, que há 11 meses faz tratamento com antidepressivo e psicoterapia para lidar com uma depressão que começou em seu terceiro ano da faculdade. "Tem gente que acha que tem que fazer as disciplinas, iniciação científica, dez ligas acadêmicas [disciplinas extras com especialização em algum assunto] e ainda fazer intercâmbio, quando não é preciso fazer tudo isso."

Para o psiquiatra Gustavo Alarcão, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, entender o uso sistemático de estimulantes por alunos é uma discussão que deve atravessar questões mais profundas. "As pessoas tendem a se medicar em vez de pensar nas causas, mas esses remédios não curam nenhuma situação. Se um aluno tem que tomar Ritalina porque não dá conta do ritmo de trabalho, é importante questionar esse ritmo e se mobilizar", afirma. "Entram em jogo também questões internas: será que são pressões só da faculdade? Será que ele também não se pressiona demais a ter determinado desempenho?"

Professor do Departamento de Saúde, Educação e Sociedade da Unifesp, o psicólogo Ricardo Padovani encontrou, em um estudo de 2014, indicadores expressivos de estresse, burnout, ansiedade e depressão entre universitários. "Ao entrar na universidade, o estudante se vê numa situação de exigência bastante distinta da que ele teve até então. É comum que isso gere uma série de desconfortos emocionais", diz. Nas mulheres, os danos tendem a ser ainda maiores. "Analisando os seis anos da graduação, a gente percebe que, do segundo em diante, as mulheres aumentam o consumo de tranquilizantes e ansiolíticos, enquanto os homens deslocam essa angústia para outras substâncias psicoativas. Homem não gosta de dizer que usa Rivotril", explica Tânia.

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Embora estudantes de medicina tenham mais acesso a remédios, o neuroaprimoramento está longe de ser cultura apenas entre eles. "A área de saúde tem mais contato com essa prática, mas não é só ali que ela existe", diz a pesquisadora Raissa Cândido, autora de um estudo sobre o uso de metilfenidato na UFMG. "A gente descobriu que na universidade o uso é tão comum quanto em lugares como Estados Unidos e Reino Unido, onde já é considerado um problema de saúde pública." Entre os entrevistados, 6% já haviam usado a substância para estudar ou trabalhar – 41% deles, pelo menos uma vez no mês anterior. Em 2011, uma pesquisa da faculdade de medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA) revelou que 8,6% dos alunos faziam uso frequente da Ritalina.

Hoje, sabe-se que o abuso de metilfenidato pode aumentar riscos cardiovasculares e psiquiátricos. E o risco de dependência é constante, segundo o psiquiatra Arthur Guerra, supervisor do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Hospital das Clínicas. "A pessoa que não tem TDAH faz um estímulo no sistema nervoso por uma razão que não existe, e o cérebro se acostuma com aquilo. Cria uma dependência psicológica", diz. "Sem o remédio, a pessoa acha que vai perder o foco. Muitos universitários chegam ao consultório com essa ideia." Por outro lado, não é claro se essas drogas funcionam quando o assunto é melhorar a performance do cérebro. "Não há estudo clínico para entender como elas funcionam em pessoas saudáveis. Por uma questão ética: a sociedade está preparada para aceitar o uso de dispositivos para melhorar a capacidade de aprender?", questiona Raissa. Enquanto isso, estudantes, de medicina ou não, seguem fazendo esse teste na vida real.

Créditos

Imagem principal: Fabio Flaks

*Os nomes dos estudantes foram trocados.

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