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Estou estando

     Nesta edição eu vou estar tentando escrever uma coluna de classe. Eu vou estar tentando me superar. Porque eu sei que colunista é que nem padeiro: tem que estar servindo bem para estar servindo sempre.
     Antes, deixa eu fazer uma pergunta. Por que é que de uns tempos pra cá todo mundo está falando nesta espécie de gerúndio do futuro? Pelo menos em São Paulo, não há quem não ouça diariamente uma atendente mandando um ‘eu vou estar te ligando amanhã’ ou um executivo aplicando um ‘nós vamos estar nos reunindo na sala quatro’. É uma avalanche de frases proclamadas com uma pompa tipo fina, apesar de serem conjugadas num tempo que não existe em nenhum livro da gramática portuguesa.
Não é que eu tenha encarnado um professor Pasquale não. De jeito nenhum. Adoro a língua falando bem, adoro a língua bem falada. Mas acredito piamente no óbvio: a contribuição milionária de todos os erros do povo garantindo sempre (e aqui sim vale o presente contínuo), garantindo sempre o fluxo vital de uma língua. É justamente por isso que não gosto deste neogerúndio emergente. Ele nem é um erro, pelo contrário, é uma tentativa de acerto. É uma formulação pra inglês ver e aprovar. E já que é para tentar ser fino, digo então que esta gerundização tardia do porvir é o aportuguesamento chinfrim, genuflexo, de um inglês corporativo, talvez não menos chinfrim, mas pelo menos existente na gramática bretã. ‘Yes sir, I will be sending your order tomorrow morning.’

Todos os caminhos levam a Miami
     Por que é que de uma hora para outra começamos a macaquear mais esse americanismo, sem nem ao menos saber a razão de o estarmos fazendo? Sei lá, mas a minha intuição quer achar que todas as pistas, assim como todas as estradas, sobretudo as da informação, ainda levam à sede do Império. Algo me diz que o cavalo de Tróia dessa invasão foi um veículo de mídia pouco notado, mas muito atuante: o call-center de grandes empresas.
     Se não, vejamos. O desembarque gerúndico começou justamente há uns quatro anos, num período que coincide com o apogeu do neoliberalismo globalizado. Era a época da bolha da internet, da exuberância irracional dos mercados, da fartura de investimentos e das privatizações no país. Assim, não custa muito esforço imaginar que o mito fundador do new gerúndio em terras bandeirantes tem início no momento em que um gerente pós-doutorado em call-centers pela matriz americana ordena ao subalterno: ‘Seja mais educado com o cliente, diga que estará tomando providências e que fará tudo para estar enviando o pedido até amanhã’.

Minha língua, minha mídia
     Também não estou recebendo de frente nenhum Aldo Rebello, aquele deputado que criou um projeto de lei que em última instância defende a substituição da palavra ‘futebol’ por ‘ludopédio’. Ou de ‘mouse’ por ‘rato’. Eu mesmo, aqui na TRIP, adoro misturar expressões pedestres com raciocínios verbais metidos a besta. Língua é para entrar em contato. O próprio inglês não tem nada de puritano. É possivelmente o idioma mais promíscuo do Ocidente. O português também só tem a ganhar com a maioria das contaminações. A maior catedral da linguagem brasileira, Grande Sertão: Veredas, foi construída por Guimarães Rosa baseada num projeto que fundiu magistralmente a fala do povo com estruturas gramaticais estrangeiras.
     Miscigenação é sinônimo de liberdade. Tem que ser. O que incomoda neste novo dispositivo tecnológico importado para otimizar a fala corporativa tupinambá é o aparato ideológico que se esconde atrás dele. O vírus lingüístico aproveita certa jequice capi-nanceira para se instalar entre nós. Ele se hospeda num velho desejo reverente, meio barato, de eficiência e sofisticação primeiro-mundista. Desejo que, diga-se, para que não fujamos tanto do tema habitual desta coluna, nem é novo nem se restringe apenas ao ambiente de negócios. É provavelmente o mesmo raciocínio que leva os grandes veículos de comunicação nacionais a cada vez mais pautarem suas matérias internacionais seguindo a cartilha da imprensa do ‘eixo do bem’, Estados Unidos e Inglaterra.
     Mas isso é assunto para uma outra hora. Enquanto o William Bonner ainda não abre o Jornal Nacional dizendo que o exército americano vai estar invadindo o Iraque, vale lembrar que a língua, além de ser a nossa pátria, nossa casa, nosso corpo, nossa alma, é também a nossa maior mídia.

*Carlos Nader está sendo um homem de mídia há 37 anos e está gostando. Ele vai estar respondendo cartas no e-mail: carlos_nader@hotmail.com

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