Estela Renner
A cineasta que comprou a causa de 33% das crianças brasileiras: a obesidade
Depois de denunciar a publicidade infantil, a cineasta Estela Renner compra a causa de 33% das crianças brasileiras: a obesidade
Sabe aquele momento de epifania quase mística, que transforma, aponta caminhos e ajusta as pessoas em seu caminho definitivo de vida? “Acho que comigo não houve essa epifania”, diz Estela Renner, a diretora paulista de 39 anos que está lançando seu segundo longa-metragem, Muito além do peso, um documentário sobre a epidemia de obesidade que atinge 33,5% das crianças brasileiras. “Porque nunca houve dúvidas. Quando eu comecei a fazer cinema, me encontrei totalmente.”
Estela está se referindo ao ano de continued education, na Universidade de Nova York, ao mestrado em artes plásticas e à formação em motion pictures na Universidade de Miami. Mas é só vencer sua timidez quase crônica para notar que Muito além do peso ou mesmo o documentário anterior, Criança, a alma do negócio (2008), começaram na sua própria infância no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo. As brincadeiras de rua, a turma de meninas do colégio Santa Cruz (do qual faziam parte Renata Ursaia, fotógrafa de seus filmes, e a pedagoga Ana Lucia Villela, diretora do Instituto Alana, que os apoia). Os tempos de bandeirante, a adolescência mochilando pelo Norte e Nordeste, o ano de curso de nutrição na USP, o de publicidade na ESPM de manhã e a escola de atores Indac à noite. “Quando eu e Renata estávamos no Amazonas, comendo e dormindo com os moradores, parecia que estávamos em mais uma das nossas viagens de mochila, com a diferença de que agora estávamos trabalhando. Mas, de certa forma, nós já havíamos começado a trabalhar naquela época. E, de certa forma, nem parece que estamos trabalhando agora, tamanho prazer de fazer o que a gente faz.”
Foi na escola de atores que Estela descobriu que, mais do que atuar, queria mesmo era dirigir. E se mandou para os Estados Unidos para estudar, com direito a um ano no Japão trabalhando como modelo (“juntando o dinheiro que eu usei no mestrado”, diz ela, filha de um casal de dentistas). E mais peças foram se somando, naturalmente, à sua trajetória. Seu premiado curta-metragem Big Sister, sobre a dificuldade de comunicação entre uma empresária de sucesso e sua filha adotada, já falava das relações familiares deterioradas. “Nada é por acaso”, diz.
Em 35g de refresco de fruta em pó, há 28g de açúcar e apenas 1% de suco de fruta
Depois de alguns curtas, comerciais, participação na sitcom Mano a mano, experiências como atriz, Estela foi convidada por sua amiga de infância Ana Lucia Villela para dirigir as videoaulas do Instituto Alana, uma ONG de defesa das crianças. O contato com educadores e crianças acabou se transformando em Criança, a alma do negócio, um apavorante registro sobre como a publicidade gera consumidores precoces e, por consequência, adultos imaturos. “Meu filho de 3 anos pediu para ir ao posto Esso, por causa dos brindes para crianças”, relembra Estela, sobre a origem do filme. “Foi quando notei que havia um promotor de vendas dentro da minha casa, na televisão. E disse ao Marcos que a gente tinha de fazer alguma coisa.”
“Marcos” é Marcos Nisti, vice-presidente do Instituto Alana, que virou sócio de Estela na criação da produtora Maria Farinha Filmes. Criança, a alma do negócio não chegou a entrar em circuito comercial, mas foi muito bem recebido pela imprensa e por educadores e pedagogos. Suas várias versões disponíveis no YouTube somam centenas de milhares de views, sem contar os compartilhamentos da versão completa e trailers. “Abriu muitas portas pra gente”, diz Marcos Nisti. “Quando começamos a buscar especialistas para um novo documentário, era incrível notar que todo mundo havia assistido ao Alma do negócio”.
Papaia?
O novo projeto surgiu quase como um spin-off do primeiro. Há pelo menos uma cena em comum: Estela mostra algumas frutas comuns para crianças e flagra a pouca intimidade delas com aquele tipo de alimento. “Ficamos muito espantados que as crianças no Brasil não soubessem o que é uma manga ou um mamão papaia”, diz Estela. “Aquilo nos incomodou muito.” Outra semelhança é a artilharia pesada contra a publicidade dirigida à criança: “O grande assunto do novo filme não é a publicidade”, esclarece Nisti. “Acredito que nosso grande assunto agora seja a criança, e em como ela é tratada nesse mundo contemporâneo, como vivemos nossas relações familiares. No primeiro filme, o grande assunto era a publicidade e os problemas que ela nos traz, entre os quais a obesidade. Neste, é a obesidade, e a gente elenca algumas de suas causas, e uma delas é a publicidade.”
“Não é possível que em um país onde um terço das crianças está com sobrepeso, nós não estejamos falando o tempo todo sobre isso”
De fato, vem chumbo de todo lado: para as marotas tabelas nutricionais das cadeias de fast-food, para famílias que não fazem refeições em casa, pais que cedem à birra dos pequenos e escolas em que correr no recreio tornou-se proibido. “A obesidade é multifatorial”, diz Estela. “Mas acho que Muito além do peso ilumina algumas questões que as outras mídias não iluminam, ou porque não querem ou porque não podem. O Fantástico, por exemplo, tem séries ótimas sobre como tratar a obesidade, mas ninguém fala nada, nunca, sobre suas causas. E não é possível que, num país em que um terço das crianças está com sobrepeso, a gente não esteja falando só disso! Imagine se um terço do Brasil estivesse com dengue.”
Um pacote de biscoitos recheados de 165g tem 30g de gordura e 50g de açucares, o equivalente a oito pães franceses
Estela está ficando exaltada. Melhor para a nossa reportagem. Lembro de um debate, ainda sobre Criança, a alma do negócio, em que a diretora contou sobre o quão “furiosa” ela fica quando um sorveteiro na praia vem oferecer o doce a seus filhos. Segundo Estela, se o dever de educar a criança é dos pais, o oferecimento necessariamente deve ser feito aos pais. Quando falamos sobre as estratégias de marketing das grandes empresas de alimento, ela usa a palavra “sacanagem”: “Por que eles chamam de néctar uma bebida que só tem 20% de fruta e 80% de açúcar, corante e água? E por que eles usam embalagens com frutas lindas e grandes? Será que não é para convencer a mãe de que ela está fazendo um bem a seu filho trocando o refrigerante pelo ‘néctar’? E por que nas tabelas nutricionais, ao lado da palavra ‘carboidrato’, tem um aviso da Anvisa recomendando a ingestão de 2.500 calorias? É claro que é uma associação preparada para que o consumidor ache que está tudo bem. Isso é cruel, e é perfeitamente evitável”.
Apesar de contar com depoimentos de especialistas de todo o mundo (da chef Ann Cooper ao superpublicitário Alex Bogusky), todos os personagens são brasileiros. Os olhos de Estela marejam ao falar de alguns personagens do filme, como Yan, um garotinho de 4 anos de Careiro da Várzea, Amazonas, que enfrenta problemas no coração e no pulmão. Ou Carol, uma adorável menina de 8 anos, filha de uma ex-gerente de projetos de TI do McDonald’s. Em determinado momento do filme, a mãe diz de Carol diz: “Eu deixei de trabalhar para eles porque eu me sentia colaborando para o tráfico tendo em casa uma consumidora”. Se você não chorar com o esforço e a singeleza de Carol e Yan, é porque a gordura hidrogenada já entupiu até seus dutos lacrimais.
“A coisa só vai mudar quando a saúde do cliente estiver tão na moda quanto hoje está a sustentabilidade”
Muito além do peso ficou entre os 24 finalistas da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (“a história vai ficar mais emocionante ainda”, prevê Nisti). A estreia aconteceu dia 12 de novembro, numa sessão seguida de debate com alguns dos depoentes do filme (Ann Cooper, Frei Betto, doutor Amélio Godoy Matos e Estela Renner) no Auditório Ibirapuera, em São Paulo.
Pelo calor das discussões que provocou até agora, tem sido plenamente atingido seu objetivo: discutir a ética do mercado. “A coisa só vai mudar por contingência de mercado”, diz Estela. “Quando a saúde do cliente estiver na moda, como hoje está o ‘selo verde’ da moda da sustentabilidade. Mas diretores de marketing também têm filhos. Dá pra mudar, a situação vai ser repensada.”
Vai lá: O filme está em cartaz nos cinemas da rede Espaço Itaú www.muitoalemdopeso.com.br