Espelho, espelho meu

Daniel Filho revela histórias de vários bastidores e diz que a TV aberta virou rádio AM

por Ricardo Calil em

Existe alguém mais bem-sucedido na história da TV e do cinema brasileiros do que Daniel Filho? Não. Mas o perfeccionista responsável por sucessos como Dancin’ Days, Malu Mulher e Se eu fosse você revela uma estranha queda pela imperfeição: “É o erro que mais te ensina”

Um dia, numa festa, um sujeito se vira para Daniel Filho e diz com despeito:

“Mas você faz sucesso, hein? Como você gosta de sucesso!”

Daniel, sem jeito, só consegue responder com um velho bordão:

“Você vê as cachaças que eu bebo, mas não os tombos que eu levo.”

A história está em Antes que me esqueçam, livro de memórias que Daniel lançou em 1988. O capítulo termina assim: “Levei vários tombos, na medida em que fui sempre arriscando, porque não existe um jeito de andar para a frente, ou mexer com a criatividade, sem o risco de errar, ou de se sair mais ou menos, o que já configura um fracasso.”

É estranho ouvir a apologia do erro vinda de um homem sempre associado a palavras como poder, sucesso, recorde, perfeccionismo. De alguém que era chamado de “Deus”, com ironia ou inveja, nos corredores da Rede Globo nas décadas de 70 e 80. E que ficaria conhecido como o rei da bilheteria do cinema nacional, alcunha não muito mais modesta, nos anos 2000.

Mas é dele mesmo que vem essa ode à imperfeição: “É o erro que mais te ensina”, reafirma Daniel. Ele pode até se gabar dos 6 milhões de espectadores que conseguiu com Se eu fosse você 2, maior público da retomada do cinema brasileiro. Mas gasta mais tempo lamentando que seu filme anterior, Tempos de paz, não tenha conseguido 60 mil espectadores a mais.

Ele fala com orgulho dos êxitos que emplacou na Globo, como Irmãos coragem, Dancin’ days e Malu Mulher. Mas dedica um afeto especial a fracassos de público como O Casarão, Espelho mágico, O bofe. “Na TV meu lema era: melhor errar rápido do que acertar devagar.”

Daniel fez graduação completa na escola do equívoco, do improviso. Nascido no Méier carioca em 1937, filho de um cantor catalão e de uma bailarina acrobática, João Carlos Daniel estreou como ator aos 7 anos no circo da família; depois foi para o teatro de revista; e daí para a TV Tupi, no tempo da televisão ao vivo.

Nos anos 70, enquanto o regime militar endurecia, Daniel Filho foi parar na Globo e ajudou a transformar a emissora carioca no maior império televisivo do hemisfério sul, ao lado de nomes como Boni, Walter Clark e Joe Wallach. A ele, coube um papel essencial: tornar a telenovela um fenômeno de audiência, um formato hegemônico e um produto de exportação.

"Quando decidi fazer um filme sobre Chico Xavier, comecei a chorar sem ter a sensação de choro"

Missão cumprida, Daniel escalou a hierarquia global: de diretor a produtor de novela, a diretor da central de criação, a diretor-geral da rede. No caminho, transou, namorou ou casou com algumas das mulheres mais desejadas do país – Dorinha Duval, Betty Faria, Regina Duarte e muitas outras –, usou os mais variados tipos de drogas, colecionou desafetos.

Em 1990, no auge de seu poder, tomou uma decisão que raras pessoas têm coragem de tomar na TV brasileira: pedir demissão de um cargo de chefia na Globo. “Havia um restaurante do lado da emissora. Eu disse várias várias vezes para alguns colegas: preferia ser sócio desse restaurante do que estar nessa posição. Aquilo eu poderia chamar de meu. Na Globo eu não tinha 1% de nada”.

Depois de alguns anos de baixa, quando a maioria já o considerava carta fora do mercado, Daniel se reinventou como homem de cinema e conseguiu outro feito em sua carreira. Das dez maiores bilheterias do cinema brasileiro dos últimos anos, seis foram dirigidas, produzidas e/ou supervisionadas por ele: Se eu fosse você 1 e 2, 2 Filhos de Francisco, Carandiru, Cidade de Deus e Cazuza. Na parede da Lereby, sua produtora instalada em um condomínio da Barra da Tijuca, onde ele recebeu a Trip, Daniel aponta para uma parede onde ficam os cartazes de seus filmes. Não há nada de sua época na TV. A razão? “Os filmes são meus.”

Aos 72 anos, ainda hiperativo e sem planos de aposentadoria, de namoro novo com a cantora Olivia Byington, Daniel prepara um novo projeto para chamar de seu – e mais outro e mais outro. No dia 2 de abril, estreia Chico Xavier, sobre a vida do líder espírita que completaria 100 anos nessa data e que tem potencial para se tornar mais um campeão de bilheteria. Enquanto finaliza o filme, ele coordena o roteiro de Roque Santeiro, adaptação para o cinema da novela de Dias Gomes, e planeja sua volta à TV Globo após um hiato de dez anos com a série As Cariocas – desta vez, produzida por sua Lereby em esquema terceirizado. Por fora, negocia com duas editoras a realização de sua biografia, a ser escrita por Marcel Souto Maior, biógrafo de Chico Xavier.

Perguntado sobre a razão de seu sucesso na TV e no cinema, ele tem uma frase pronta: “Eu corro atrás do sucesso como quem corre atrás de um prato de comida. Eu persigo sempre o sucesso. Minha natureza é essa”. Mas, questionado se gostaria de voltar atrás em algum fracasso, ele admite novamente sua estranha queda pelo erro: “Não, nunca. Eu estava aprendendo a ser o que sou. E o que sou também é resultado das minhas escorregadas”.

Você diz ser ateu. Por que decidiu fazer um filme sobre um líder espírita?
É uma história que não pode ser rejeitada. O Chico Xavier não era só um líder espiritual. Ele é um dos brasileiros mais famosos de todos os tempos e tem uma vida realmente inatacável. Mas as pessoas não conhecem bem sua história. Muitas ainda confundem espiritualidade com curandeirismo. O Chico nunca operou ninguém nem curou ninguém. Ele psicografava livros e cartas de espíritos para pessoas vivas e elas reconheciam aquelas cartas. Ele passou por vários testes que tentavam desmascarar o charlatanismo e nunca ninguém conseguiu. Eu acho que as pessoas precisam discutir isso que se chama espiritualidade. Eu tenho a curiosidade de procurar respostas para coisas que não têm explicação e que eu não consigo atribuir a uma santidade. Não que o filme vá explicar as coisas, eu apenas conto a história do Chico. Eu queria ser só o produtor, mas eu não consegui encontrar nenhum diretor. Um dos que convidei tinha medo. Não da história, mas dos espíritos mesmo.

Ao longo do processo do filme, você passou por alguma situação que te fez rever seu ateísmo?
Eu continuo ateu. Mas houve uma coisa estranha... No dia que decidi dirigir o filme e contei para minha esposa na época, comecei a chorar sem ter a sensação de choro... As lágrimas rolaram dos meus olhos sem eu saber que estavam rolando. Eu não sentia aquela emoção que normalmente a gente sente quando chora. No cinema, eu choro muito. Eu prendo, tento segurar, mas quando a coisa sai é aquele vexame, aquela catarse. Só que, daquela vez, eu continuava falando da mesma forma que estou falando com você. E a minha mulher: “Daniel, está acontecendo alguma coisa?”. E eu: “Não, nada”. Tem outra coisa que aconteceu na filmagem. É uma coisa da vibração de qualquer ser humano, que altera o ambiente. Todo mundo que lida com a história do Chico acaba entrando numa sintonia de paz, falando baixinho. Eu senti isso na filmagem e tentei passar isso no filme. O que eu gostaria, quando acabasse o filme, é que as pessoas dissessem para elas mesmas: “Eu posso ser menos intransigente, ser mais carinhoso, eu posso ver o mundo de uma outra maneira...”. Depois de ter atravessado a vida de Chico Xavier, acho que estou tentando ser uma pessoa melhor.

Na prática o que isso significa?
Eu procuro ficar mais calmo, procuro me aporrinhar menos por coisas que antes me aporrinhavam muito.

"Eu traguei muito, fumei muito, cheirei o que era necessário na época"

Você tinha fama de esquentado...
Não é uma questão de ficar mais ou menos agressivo. Não é uma mudança total, é uma sintonia fina. Nas coisas do dia a dia às vezes eu me chateio mais do que deveria. Por exemplo, outro dia fiquei perdido na ponte aérea... aquela em que o voo das quatro e meia sai às sete e você fica uma hora esperando no avião. Apesar de estar possesso, eu pensei: “Calma, poderia ser pior. Olha quanta gente está aqui dentro com você, você não é o único a estar neste avião”. Se eu estou com o Chico na cabeça, isso altera a minha maneira de falar, fico mais tranquilo. Mas isso não quer dizer que deixei de ser mais ou menos exigente, principalmente com o meu trabalho. Eu continuo perfeccionista.

No Chico Xavier, você recriou um programa chamado Pinga Fogo, da TV Tupi, que foi onde você começou na televisão. O que você aprendeu dessa época da TV ao vivo?
Ah, se você voltar para a TV ao vivo, ou mesmo antes para o circo e o teatro de revista, isso é a base de tudo. A gente põe no sangue uma serragem que não dá para aprender na escola. Eu estava lá no momento da criação da TV, fazendo um veículo do zero. Para o bem e para o mal, eu participei da criação dessa máquina de fazer doido. Nasci em 1937, então sou uma pessoa da época do rádio. Quando as pessoas começaram a ver televisão no Brasil, lá por volta de 1955, eu já tinha 18 anos. Então eu não sou criado pela televisão. Eu faço parte da turma que criou a televisão. Quando a gente se encontra, eu, Laura Cardoso, Hebe Camargo, Maurício Sherman, é sempre um papo de velho. Eu fiz uns 400 programas ao vivo, decorando 150, 200 páginas por semana, por cinco ou seis anos. Mas não era só uma questão de ser ao vivo ou não. O problema é que não existia linguagem de TV. Ainda não sabia se era rádio, se era teatro, era cinema. A gente estava inventando enquanto fazia.

Eu estava lendo seu livro de memórias ontem e você fala do entra e sai de mulheres no seu apartamento na Avenida Bartolomeu Mitre, no Leblon, que você dividia com o Hugo Carvana e o Miéle, nos anos 60. No caminho pra cá, eu passei por acaso por essa rua e o predinho continua lá. Era mesmo aquela loucura que você descreve?
Ah, sim. Quando surgiu a pílula, a gente juntou a fome com a vontade de comer. As coisas só acalmaram com a Aids. A gente viveu um período em que todos estávamos muito felizes. As meninas também... Quem estava dentro do armário começou a sair de dentro. Havia algo no ar. Eu falo para os meus filhos: o mundo era muito bom. Foi uma época de grande prazer para quem soube aproveitar e não ficou preso às convenções religiosas. Não tinha compromisso, era uma abertura geral. Foi uma revolução sexual em todos os sentidos. Ainda mais para nós do teatro, que já convivíamos com isso de uma forma muito mais agradável e natural do que a sociedade toda.

Você tem fama de conquistador, namorou vários símbolos sexuais. A situação só tinha o lado positivo?
Era boa, era boa. Mas era geográfica. Tem um filme do (ator italiano Alberto) Sordi, Contos de Verão, em que o personagem fica atrás de uma mulher o tempo todo. Uma hora vira um amigo dele e pergunta: “Você acha que essa mulher fantástica vai dar pra você?” E ele responde: “Toda mulher tem um minuto na vida em que ela diz ‘Eu dou pra qualquer um’. O jeito é você estar lá na hora” [risos]. Então, eu tive essa facilidade geográfica. Era estar presente, estar por perto. Isso não me torna melhor do que ninguém, né?

Mas ajuda na fama...
É verdade. As mulheres eram famosas. Eram mais bonitas porque viviam disso. Mas não eram mulheres melhores por causa disso. Na verdade, eu posso ter perdido mulheres muito interessantes porque eu era muito apressado, muito afobado, quando era jovem. É o que acontece nessa coisa afoita da vida.

Na correria do trabalho?
Não. Na competição sexual. E o que pode ter acontecido, e tenho a certeza de que aconteceu, é que pessoas ótimas passaram perto de mim, junto de mim, e eu não as vi. Então, a gente estava falando da época da revolução sexual. Eu acho que muitas pessoas se perderam nessa época. Agora as coisas estão mais comedidas. Não é problema da idade. Mas todo mundo quer viver com mais tranquilidade, as pessoas têm se olhado um pouco mais do que nos olhávamos nos anos 60, 70. Antes a gente conhecia e opa! Valeu! Eu poderia ter namorado mais, conversado um pouco mais, ter tomado um copo de vinho.

Seus relacionamentos hoje são melhores do que naquela época?
São diferentes, são totalmente diferentes. Hoje eu sou um homem de 72 anos. Eu era um garoto de 20 anos.

Mais passional?
Fui passional, erótico, várias coisas... Logicamente, eu era uma pessoa muito mais ativa, mais ligada. Os hormônios estourando. Tem uma história que papai me contava quando eu era menino. Que o caçador jovem sai cheio de munição, dando tiro para tudo que é lado, bang, bang, bang! É uma loucura! Mais velho, você dá só um tiro. E, mesmo assim, tem que chegar bem perto. Estou nessa fase.

 

Essa liberdade que você viveu nos anos 60 chegou também às drogas?
Ah, sim. Não havia uma festa em que não tinha uma sala da cocaína, uma sala da maconha. Aqui no Rio, em Los Angeles, em Paris. Na época era uma coisa liberada. No princípio, quando eu era garoto, tinha o lança-perfume. Era um enorme sucesso, um saudoso sucesso.

E você experimentou de tudo?
Experimentei, não. Eu usei! Porque senão fica aquele papo hipócrita de “fumei, mas não traguei”. Traguei bastante, fumei bastante, cheirei o que era necessário na época, como todos os meus amigos. Não quero entregar ninguém. [risos] Mas a verdade é que isso fazia parte da vida social. Era bem complicado na época entrar em uma festa, uma pessoa te passar uma bandeja com as carreiras de cocaína e você não cheirar. Você passava por chato. É a mesma coisa com o álcool hoje. E eu acho o álcool uma coisa mais perniciosa, porque a lei permite, é visto como uma coisa normal. Mas não quer dizer que o álcool seja ruim. O problema é o excesso. Qualquer coisa em excesso é ruim, até o sexo. [risos].

Você não caiu no excesso em nenhum momento?
Em nenhum momento. Tanto é que a minha saúde está aqui perfeita. Hoje vivo tranquilamente sem necessidade de nada. Vou a uma festa, tomo um copo de vinho ou de cerveja. E às vezes, muito raramente, um bom martíni seco, como o James Bond.

Você teve muito poder na Globo na época em que ela era mais poderosa. Como era essa sensação?
Na minha cabeça, vem sempre aquela frase de que o poder corrompe. Chegou a um ponto em que me incomodava, até pedir demissão em 90. Saí exatamente porque isso estava me incomodando.

O poder?
O poder. Eu achava que tinha conquistado aquele poder, que fui eleito para aquele poder. E por quê? Porque eu fiz muitos programas que deram certo. Eu tinha ajudado a construir a TV Globo. Mas eu comecei a me perguntar: “Qual é o meu poder realmente? É o poder pessoal ou é o poder da cadeira do camarada que é diretor-geral da Rede Globo?”. Quando eu pedi demissão, queria saber a diferença entre as duas coisas. Eu estava com 55, 56 anos de idade. Meu plano era ficar um tempo fora e depois voltar terceirizado para o trabalho. E acho que fiz bem. Mas tive dificuldade para me adaptar. Fiquei três, quatro anos em baixa.

Baixa profissional?
É. Porque não conseguia emplacar o que achei que emplacaria. Foi quando fiz Confissões de adolescente na TV Cultura. A única que me apoiou foi a Cultura. E foi muito bom ter feito. Eu não estaria nessa posição que estou hoje, conversando contigo, tranquilo no meu escritório, na minha pequena empresa, fazendo os meus filmes e tendo a certeza de que as coisas que faço são minhas. Você pode notar que aqui não há nenhum cartaz de alguma coisa de televisão, só de cinema. E eu fiz muito mais televisão que cinema. Eu fui muito mais importante para a televisão do que para o cinema.

Ficou uma mágoa?
Não. A razão é que tudo que está aqui é meu e tudo que fiz na televisão pertence à televisão. Eu não tenho 1% de nada.

Como você compara o poder que tem hoje no cinema com o poder que você tinha na televisão?
Não sei qual é o poder que eu tenho no cinema. Mas sei que ele é meu. É melhor que na TV. O que é a Rede Globo? São as pessoas que estão lá, pertence a toda a sociedade. Mas você pode ser demitido a qualquer momento. Você não é dono da Rede Globo. Aqui [na produtora], tudo que acontece é meu, o filme é meu, o problema é meu. Se eu fracassar, não consigo fazer outro filme em seguida. Por que as distribuidoras iriam dar esse dinheiro para mim? Eles dão porque algum retorno eu dei. Se eu fosse você 2, primeiro lugar de bilheteria, eu sou produtor e diretor. 2 filhos de Francisco, segundo lugar, eu sou produtor-associado. Carandiru, sou coprodutor. Se eu fosse você, produtor e diretor. Cidade de Deus e Cazuza, sou produtor.

"Eu fui mais importante para a TV que para o cinema. Mas na Globo não tinha 1% de nada e agora tudo é meu"

A que você atribui esse sucesso?
72 anos de vida, 72 anos de experiência. Na verdade, só de carteira assinada são 57 para 58 anos, na Globo como diretor foram 30 anos trabalhando com todo tipo de público... Isso dá um conhecimento na sua alma, no seu sentimento da plateia. Você sabe que na televisão é obrigado a agradar o público de ponta a ponta. Você passa a ter um conhecimento da linguagem do país.

Você também teve uma boa cota de fracassos, de erros. O que você aprendeu com eles?
Eu tenho muitos erros no currículo. E o erro é o que mais te ensina. Mas é importante dizer que nem sempre o fracasso é um erro. Eu posso falar de um fracasso meu, que é uma novela chamada Espelho Mágico. Eu pensei que podíamos falar dos bastidores da televisão, de atores que faziam de tudo, desde filme vanguardista passando por novela até dublagem. Fracassou. E acho que aprendi na época. Aprendi o quê? Que novela das oito não poderia ser um experimento como as coisas que a gente fazia às 11 da noite. Tinha outra novela que se chamava O Casarão. Essa eu adoro. Era uma perfeição. Mas não teve muito sucesso. A novela se passava em três épocas simultâneas e isso complicava a cabeça do espectador.

E no cinema?
Quando eu fiz Tempos de paz, por exemplo, era um filme que eu sabia que era pequeno, mas eu errei os números. Achei que era um filme que faria 150 mil, 200 mil espectadores. O filme fez 90 mil. Faltaram esses 60 mil para pagar seu lançamento. Eu me pergunto o que houve. Eu acho que Tempo de paz é um dos meus melhores filmes. Mas não foi um sucesso. Aí você diz: “Você é o cara dos 6 milhões de espectadores num filme. Vai chorar por 60 mil no outro?”. Mas é que o outro merecia. Acho que Tempos de paz foi um pouco derrubado pela crítica...

Você tem uma relação conturbada com a crítica, não é?
Eu não tive boas críticas em nenhum dos filmes que dirigi, só nos que produzi. Teve até uma crítica para um filme meu que dizia: “os atores se movem bem em cena, a fotografia e a montagem são boas, mas a direção é péssima”. Eu tenho isso guardado. Meu Deus do céu! Será que a pessoa não sabe que os atores só se mexem em cena quando eu digo para eles se moverem? Que sou eu que coloco a câmera no lugar? Dava a impressão de que eu chegava lá, já tudo estava pronto, e eu só dizia ação e corta! Que tudo funcionava a despeito da minha presença. Então, para mim, o sucesso ou o fracasso está ligado diretamente ao público. A crítica é tão mutável, tão pessoal. Como alguém pode assistir a um filme e duas horas depois escrever uma análise acabada desse filme? Eu não consigo fazer isso com os filmes que eu vejo.

Se você fosse um crítico, como você compararia a Globo de hoje com a da sua época?
É uma televisão mais populista e mais popular. Ela busca ser mais popular para atingir as classes C, D e E. Por isso, possivelmente esteja perdendo as classes A e B. Eu sabia que isso ia acontecer. Eu disse há muito tempo que a TV aberta iria se tornar a rádio AM e que a TV fechada seria a FM. Além disso, não podemos esquecer que surgiu a internet. Tem horas que fico vendo o YouTube direto. Por quê? Porque eu posso escolher a que assistir, posso ver o Frank Sinatra na hora que eu quiser. Então a TV hoje tem outras concorrências.

Você é um cara da dramaturgia. Qual sua opinião sobre um reality show como o Big Brother?
É um programa que, para mim, é meio como o Avatar. Faz tanto sucesso, tanto sucesso que você acaba tendo que ver mesmo, não tem jeito. [risos] Eu quase não ligo a TV hoje, mas já dei uma olhada no Big Brother. Me sinto obrigado como homem de comunicação. É um zoológico, as pessoas estão colocadas ali como animais. Todos ficam parados, olhando pro nada, falando besteira. É a descoberta de um gênero... Ao mesmo tempo, é o Janela indiscreta, do Hitchcock. Aquela curiosidade de ficar olhando a vida do outro. Mas o BBB tem a ver com algo maior que está acontecendo.

O que é?
Está no Facebook, no Twitter, no YouTube. As pessoas todas expondo sua intimidade pra todo mundo. Tem a ver com a coisa da celebridade. Hoje, as pessoas me param na rua para tirar foto de 5 em 5 min. Eu viro o Mickey. Estou em coluna de fofoca desde os anos 50, desde a Revista do rádio. Houve revista que chegou a anunciar dois casamentos meus na mesma edição [risos]. Mas antes, os editores e as revistas eram mais comedidos, eles não entregavam muito por causa da sociedade. Hoje em dia sai tudo o que você faz. Dá até para medir como está nossa carreira. Se você vai à praia e não sai no jornal, então alguma coisa está errada [risos]. Mas nós que vivemos da caridade popular não podemos reclamar da popularidade. Isso é que me dá dinheiro, que me sustenta. Eu tenho repetido muito uma frase: “Corro atrás do público como quem corre atrás de um prato de comida”.

Você passou os anos 70 e 80 correndo, emendando um trabalho atrás do outro. Nos últimos dez anos, dirigiu oito filmes. Sua hiperatividade não melhorou com o tempo, não é?
Não melhorou. É um vício, não sei quando começou. Acho que estou trabalhando mais do que na época que eu dirigia a TV Globo, só que antes eu lidava com muito mais gente. Eu falo aqui na produtora que vou trabalhar quatro dias por semana e as pessoas riem. O pior de ser hiperativo é que eu não me lembro de muita coisa que aconteceu comigo. Apesar de ter uma memória cinematográfica muito boa, eu não tenho muita memória para fatos. Fui diretor da Globo por 30 anos, imagina a quantidade de pessoas que dirigi, a quantidade de besteiras que eu falei. Agora deve ser escrita uma biografia minha, estou conversando com o Marcel Souto Maior. É uma biografia que estou autorizando, mas não vai ser chapa branca. Há duas editoras querendo. Muitas pessoas contam histórias sobre mim que eu não lembro. Disse pro Marcel ouvir quem ele quiser. Estou até tentando fazer uma lista de pseudoinimigos meus, porque os jornalistas sempre falam dos meus inimigos e são sempre as mesmas declarações há anos. Eu penso: “Meu Deus do céu, essa história está tão velha. Será que foi mesmo assim?”.

Entre os seus pseudoinimigos está o Boninho? (há boatos de que Daniel teria dito: “O Boni fez muita coisa boa, mas também fez o Boninho”.)
O Boninho nunca foi meu desafeto. Eu me considero um irmão do Boni, o pai dele. Então a última pessoa que eu poderia xingar é o Boninho. E o Boni já é tão severo com o Boninho que eu não preciso dizer nada! Várias vezes eu falei pro Boni: não fala assim com o menino [risos]. Juro, pode publicar aí.

"A TV aberta hoje é mais popular e populista que na minha época, virou rádio AM"

E essa história de Mário Gomes te processar? [ele acusa Daniel de espalhar o famoso boato sobre o ator, uma cenoura e uma operação de emergência, em represália a um suposto caso entre Gomes e Betty Faria, na época, mulher do diretor].
Hoje mesmo eu li essa notícia. É uma bobagem. Por uma história de 30 anos atrás? O que é isso? Eu já escalei tanto o Mário Gomes pra novela depois dessa história.

Recentemente houve outro processo contra você, de reconhecimento de paternidade, movido por João Carlos Daniel, que disse ser seu filho com a empregada dos seus pais (o teste de DNA comprovou a paternidade, mas João Carlos anunciou que vai desistir do processo). Como você encarou essa situação?
É incômodo. Estou deixando nas mãos dos advogados, o que a justiça resolver será feito. É uma coisa absurda aparecer uma pessoa na minha porta, um homem de 60 anos, dizendo que é meu filho. Não é uma coisa que você recebe e fala “maravilha!”. Eu tinha o quê? 12 anos de idade! O que é isso? Muito estranho.

Você tem tempo de usufruir do conforto material que você conseguiu e da companhia dos seus filhos?
Tenho. Eu ainda viajo muito, tenho a sorte de namorar uma mulher gentil, consigo dividir esse conforto material com minha família. Meu pai viveu 102 anos e minha mãe está com 98. Então a genética manda eu me cuidar porque posso ter muito tempo para gastar. E eu tenho me cuidado. Parei de fumar aos 45 anos. Uma droga mais pesada que as outras. Eu faço pilates, eu caminho. Mas eu não sou um cara da ginástica. Faço sob protesto, é quase uma ordem médica. Envelhecer é uma merda, é uma coisa desagradável. Sua cabeça acha que você pode, mas você não pode.

Aposentadoria não passa pela sua cabeça?
Vou parar de trabalhar quando as pessoas não quiserem mais ver meus filmes. Eu queria trabalhar mais como ator, mas as pessoas não me chamam. E nas últimas vezes que chamaram não pude fazer.

Como você vê hoje o Daniel dos anos 70 e 80?
Aprendendo a ser o que sou hoje.

Você mudaria algo?
Não, não. O que sou hoje é o resultado de 72 anos de vida. Fiz muita coisa errada, sem dúvida. Dei muito canelada, muita escorregada. Mas quem não deu, meu Deus do céu?

O Chico Xavier?
Ah, o Chico Xavier também deve ter se arrependido de alguma coisa que ele fez. Eu também poderia, mas já foi. Por que eu não pensei mais antes de fazer certas coisas? Mas fiz e não dava para pensar na hora. A sensação do momento é que você está fazendo uma coisa ótima. Depois você diz: “Hum, não é tão bom assim...”. Mas há também a diversão de você ver que não está perfeito, né?

Crédito: Arquivo pessoal
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Crédito: com José Lewgoy num intervalo das gravações de Dancin’ days, em 1978
Crédito: com José Lewgoy num intervalo das gravações de Dancin’ days, em 1978
Crédito: Arquivo pessoal
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