Fala que eu te escuto

Aos 72 anos, Eduardo Coutinho é o mais importante diretor de documentários do país.

por Fernando Luna em

Talvez a única pessoa que não considere Eduardo Coutinho o mais importante diretor de documentários do país seja ele mesmo - o que já diz muito sobre esse "paulista auto-exilado no Rio". Mais até do que ele provavelmente gostaria de revelar. Ao contrário de seus personagens, que tagarelam sobre amor, morte, desejo, família, medo, religião e dinheiro como se estivessem diante de um espelho e não de uma câmera, Coutinho mantém sua vida privada longe do público. Para alguém que escolheu filmar o outro, falar de si é quase um despudor. Chega a ser um esforço físico.

No início da entrevista, a voz se recusa a sair, as palavras são mastigadas e engolidas. O único som escutado sem esforço é o da tosse insistente, cultivada em mais de 45 anos de uma dedicação ao cigarro que nem a bronquite foi outrosz de interromper. Seu corpo fica recostado na cadeira, já um pouco inclinada para trás, o mais longe possível do gravador. Como você vai ler daqui a pouco, não demora muito para Coutinho embalar na conversa e frisar, agora numa fala ligeira, que foi bem ali, no Cecip, o Centro de Criação de Imagem Popular, que as coisas recomeçaram para ele.

Antes disso, é preciso contar como foi o começo. No início dos anos 60, Coutinho volta de uma temporada estudando cinema na França. Passa da teoria à prática no Centro Popular de Cultura, da União Nacional dos Estudantes. Com a UNE-Volante, roda o país atrás de imagens dos bolsões de pobreza. Mais para realismo socialista que Cinema Novo, o maior mérito da produção foi levar Coutinho ao lugar certo, na hora certa: o sertão da Paraíba, duas semanas após o assassinato do líder camponês João Pedro Teixeira. Ninguém sabia, mas era o início de Cabra Marcado para Morrer.

E, quase ao mesmo tempo, foi também o fim. Mal começam, as gravações são interrompidas pelo golpe de 64. O projeto de transformar a saga de João Pedro num longa-metragem, com a viúva Elizabeth Teixeira interpretando a si mesma, fica suspenso por 17 anos. Durante boa parte desse período, Coutinho trabalha no Globo Repórter, dirigindo alguns programas memoráveis como Theodorico, Imperador do Sertão, em 1978. Nada, porém, que o fizesse esquecer doCabra. O filme afinal é retomado três anos depois. Não como ficção, mas como documentário, o mais extraordinário já realizado no país.

No auge
Dessa vez, a idéia é voltar aos locais de filmagem, no interior da Paraíba e de Pernambuco, e reencontrar o elenco original, em especial Elizabeth e seus 11 filhos. Sem escorregar no melodrama ou na panfletagem, Coutinho mostra o impacto de quase duas décadas de ditadura militar naquela família. A partir de histórias da vida privada, narra a História na primeira pessoa do singular. O Cabra é premiado no Brasil, Portugal, França, Itália, Alemanha e Cuba. Mesmo assim, Coutinho passa outros 15 anos quase sem chegar aos cinemas - O Fio da Memória, de 1991, mal chega a ser distribuído.

É aqui que voltamos ao Cecip. Essa organização não-governamental, criada para fazer filmes educativos para comunidades carentes, vários deles dirigidos pelo próprio Coutinho nessa segunda entressafra, produz Santo Forte, com apoio da RioFilme. Em 1999, esse documentário sobre religiosidade, rodado na favela Vila Parque da Cidade, no Rio, chega aos cinemas. Era o tal recomeço, agora sem interrupções. Nos anos seguintes, Coutinho lançaria Babilônia 2000Edifício Master - onde morou, no início dos anos 60 - ePeões. Todos já pela VideoFilmes, a produtora dos irmãos João e Walter Salles.

Aos 72 anos, Coutinho segue no auge. Com estréia marcada para novembro, O Fim e o Princípio, que o leitor vai conhecer melhor nesta entrevista, é um de seus grandes filmes. Como sempre, o diretor escancara o processo de filmagem e se deixa flagrar em várias cenas. Essas aparições são o máximo de exposição que Eduardo Coutinho gostaria de ter, além de sua recorrente declaração genealógica: casado há 35 anos com a pernambucana Maria das Dores, pai de Pedro e Daniel, avô de Maria Eduarda. Fora isso, ameaça se fechar num humor peculiar que chega a ser folclórico, e não parece durar muito. "É meio ceninha, mesmo", concede. Gravando...

Boa tarde... 
Sacrifício... 

Qual é o sacrifício, Coutinho? 
Falar. Não gosto de dar entrevista... Quer uma água? Você vai gravar? 

Já estou gravando. Você prefere ouvir que falar? 
Evidente, né? Por isso eu filmo. 

Se todo mundo fosse assim, você não teria feito nenhum filme. 
Exatamente, se não tenho a palavra, não tenho filme. Se as pessoas não falam, e não falam bem, com firmeza, não tenho filme... Quando vou num debate, respondo as perguntas relevantes, até porque sei que as pessoas estão interessadas. Se for uma pergunta imbecil, não tem muito o que dizer.

Você faz perguntas imbecis quando filma? 
Toda hora. Algumas elimino, são só um ruído. Outras, não. Neste último filme, um personagem diz que não vai estar vivo dali a um ano. Eu tinha que dizer alguma coisa, aí falei: "Precisa ter fé". O cara, que já tinha dito antes que havia rezado muito mas nunca tinha sido atendido, retruca: "Fé?!". Isso me desmoraliza, mas deixei no filme. Não por masoquismo, é que faz parte da relação de filmagem.

Filmo em lugares terríveis, mas evito tratar os personagens como coitadinhos. Ou como heróis. A distância justa é nem olhar de baixo pra cima, nem de cima pra baixo

Em Edifício Master você aparece desconcertado quando um cara pede um emprego para você, no meio da entrevista. 
Não sabia o que dizer, gaguejei. Ele me desarmou inteiramente, e a todo momento isso pode acontecer. Não tenho problema em mostrar essas coisas, ainda que me desautorizem como diretor... Tem documentários em que não se ouve a voz que pergunta. Ora, as pessoas que falam sozinhas estão no hospício. Ali é uma conversa, um improviso absoluto.

E como você lida com o improviso na vida? 
Na vida, lido mal com tudo [risos]. Aliás, não falo da minha vida pessoal. Pra encerrar esse assunto, bota que sou casado com uma pernambucana, tenho dois filhos e uma neta. Põe minha neta, senão ela fica triste. Na vida lido com culpa, como a maioria das pessoas. Os filmes, filmo sem culpa. Filmo em lugares terríveis, mas evito tratar os personagens como coitadinhos. Ou como heróis. A distância justa é nem olhar de baixo pra cima, nem de cima pra baixo... Minha filmagem vive do acaso. Claro, faço escolhas e consulto minha equipe, sempre mais otimista que eu. Em geral, sou pessimista... Às vezes, na hora da filmagem a pessoa me conta uma história dez vezes melhor do que tinha contado antes, na pesquisa. 

Por quê? 
É mais ou menos a frase do Didi, "treino é treino, jogo é jogo". Claro, não é sempre assim. Teve um personagem que na pesquisa disse que era gay, e na filmagem falou que não queria tocar no assunto, porque tinha namorada. Aquele que canta Frank Sinatra, no Edifício Master, na pesquisa revelou que se naturalizou americano e lutou no Vietnã. Depois pediu que não se tocasse no assunto, porque a guerra ficou maldita e tal. Aqui estou falando porque ele está muito velho, num asilo, então acho que não faço mal contando isso agora.

Por que as pessoas aceitam falar de si mesmas em um filme? 
Um cara chamado Pierre Bourdieu, sociólogo, fala que a necessidade essencial do ser humano é se justificar diante do mundo. E o mundo são os outros, ninguém se legitima sem os outros. O inferno são os outros, sem o outro você não existe, você não é reconhecido. Quando fala para os outros, a pessoa sente que tem nesse momento a possibilidade de se justificar. E a forma de se expressar é sempre única, singular. A pessoa quer ser reconhecida como singular.

Como você faz para não julgar seus personagens? 
É aquela velha história: tentar saber as razões do outro, não as minhas. Quando é um cara pobre, um excluído, é muito mais fácil. Nunca filmei pedófilo, nunca filmei quem matou dez; não conseguiria. No caso do Theodorico (latifundiário protagonista de Theodorico, Imperador do Sertão), tem o problema da empatia. Ele é um cara monstruoso, mas não excepcionalmente monstruoso, então pude me relacionar com ele. E é claro que eu sabia que, sem polemizar, ele me diria mais. Adorava quando ele falava que o homem pode ter dez mulheres porque o touro tem dez vacas, ou que a vida na roça é extraordinária, bem ao lado de uma família miserável... 

É dar corda pro cara se enforcar? 
Não, ele não se enforcou. Talvez tenha ganho mais prestígio; as coisas, naquela época... Dou corda para que ele diga o que pensa, sem censura. Sem forçar nada. Tem documentário, como o do Marcel Ophuls entrevistando ex-nazistas, que precisa criar armadilhas [para fazer os personagens falarem] ... Quero filmar pessoas que vão ter prazer em falar comigo, e eu em falar com elas. Não faço armadilha, odeio. 

As pessoas que não são conhecidas são mais desprotegidas, minha responsabilidade com elas é muito maior


Armadilhas como se mostrar simpático a uma pessoa e depois fazer um filme contra ela? 
Isso é canalhice... Conheço uma fraude extraordinária. Um cineasta polonês veio ao Brasil fazer um documentário, com a tese de que os bicheiros eram a essência do Carnaval. Ele dizia às pessoas o que elas deveriam falar! Contratou uma atriz polonesa para se passar por alguém que ficou surda por conta de um foguete que estourou perto do seu ouvido, e graças a um bicheiro teria aprendido a língua dos surdos-mudos. E ela narra o filme, com legendas... Canalhice.

Já tinha lido você contando essa história. É por isso que você não entrevista pessoas famosas, que falam muito com a mídia e têm um discurso pronto? 
As pessoas que não são conhecidas têm pouco a perder. São mais desprotegidas, minha responsabilidade com elas é muito maior. No outro extremo está o ídolo total, o Roberto Carlos, sei lá. Esses jamais vão dizer alguma coisa interessante, eles querem ser ídolos de todos, ser um denominador comum. Então, não vão me dizer nada interessante, entende?

Você tem ou já teve vontade de ser ídolo? 
Não tenho ilusões. Tirando exceções como Michael Moore, documentário foi, é e será marginal. As pessoas vão ao cinema para sonhar, e a ficção facilita isso com uma história inventada, com atores. Por isso Carandiru tem 4 milhões de espectadores e O Prisioneiro da Grade de Ferro, 30 mil. Isso não quer dizer que eu aceite o gueto. Adoraria que as televisões financiassem e passassem [documentários]. Acho ótimo ser reconhecido, e, quando o prêmio é em dinheiro, melhor ainda. Sei que nesse campo marginal tenho prestígio, desde Santo Forte [lançado em 1999] meus filmes vão pros cinemas.

Foram cinco filmes depois dos 65 anos, uma idade em que a maioria das pessoas pensa em parar. 
Tô com 72 anos, tinha 65 na época em que fui fazer Santo Forte. Havia 15 anos que não lançava um filme no cinema. Tava morto, numa crise pessoal absoluta: "Minha vida tá perdida, não tenho mais o que fazer, meus filhos estão criados". Fui procurar a RioFilme, o [então diretor José Carlos] Avellar. Tava de porre nesse dia, pra falar tinha que estar um pouco de porre. Aí contei que queria fazer um filme sobre religião, numa favela, todo baseado na palavra. Só teria o Cabra, um único filme na minha vida, se tivesse morrido sem fazer Santo Forte ... [Bate três vezes na madeira.]

Quando você começou a fumar? 
Aos 26 anos, por isso estou vivo. Se tivesse começado com 15... Hoje fumo menos da metade do cigarro e não trago mais. Se tragar, minha garganta não agüenta. Fumar é uma coisa que faz parte da minha vida, odeio quando querem me fazer sentir culpado por isso. A nicotina, o gesto, a fumaça... Tanto que fumar à noite é detestável, o bom é ver a fumaça. Mas os problemas estão aparecendo... 

Que problemas? 
Bronquite. E catarata, estou para operar. Não me preocupo em ficar numa cadeira de rodas, mas cego é difícil... A visão é o órgão essencial para mim, quando entrevisto uma pessoa tenho que olhar para ela. Para ver televisão já está pior. 

Você assiste TV? 
Assisto, sem muito interesse. Minha mulher vê, aí às vezes acompanho. 

Você já usou ou usa alguma droga? 
Já usei. Não uso mais por uma razão que não tem nada a ver com moral: tenho o maior bode com todas. Experimentei maconha e cocaína. Nunca tomei ácido, acho que não voltava! Já tive alucinações com maconha, o que é um absurdo. Alucinações violentíssimas, horrorosas. Simplesmente não dá pra mim. Uma hora tentei fazer um filme usando cocaína, na época da montagem... Não adiantou porra nenhuma. 

Quando você decidiu fazer cinema? 
Era cinéfilo desde criança. Imagina cinéfilo no Brasil, nos anos 40: só chanchada. Adorava, vi 11 vezes Carnaval de Fogo [de Watson Macedo, com Oscarito e Grande Otelo fazendo Romeu e Julieta]. Passar de cinéfilo a cineasta é um passo... 

Como foi o seu? 
Tinha um programa de perguntas chamado O Céu É o Limite. Me inscrevi para responder sobre cinema em geral, mas perdi no primeiro dia... Graças a Deus, [o dono da TV Tupi, Assis]Chateaubriand começou com aquelas coisas escrotas que fazia: uma campanha contra o José Ermírio de Moraes [dono da Votorantim, patrocinadora de O Céu...], que não queria dar mais dinheiro para o programa. Aí o Moraes foi para a TV Record e abriu um concorrente, O Dobro ou Nada.

E você foi lá? 
Disse que era especialista em Charles Chaplin... Não sabia nada dele, tinha visto uns cinco filmes e só. Passei nove semanas concorrendo; na quarta, já tinha lido tudo escrito sobre ele. Sabia do cardápio de um jantar em Paris aos nomes das equipes técnicas dos seus filmes, e são uns 90 filmes... Era jovem e a memória funcionava, hoje não decoraria dois nomes. Levei um prêmio de 2000 dólares, era dinheiro pra caralho! Fui viajar pela Europa, e um amigo me inscreveu para uma bolsa do Idhec [Instituto de Altos Estudos Cinematográficos], na França. Isso foi em 57. Três anos depois, voltei pro Brasil e fui filmar para o CPC [Centro Popular de Cultura] da UNE.

Você voltaria a Paris em 68, não é? Em maio aconteceram as manifestações, como estavam as coisas? 
Cheguei em setembro, não tinha mais nada, não se notava nada nas ruas. Mas estive na Tchecoslováquia, em Praga. Isso foi choque, o resto é bobagem.

No fim da Primavera de Praga, quando os russos invadiram a cidade? 
Quase tomei tiro! Fui convidado para um festival de cinema na Bulgária, e apareceu uma chance de ir a Praga. Cheguei uma semana antes da invasão. No dia, alguém me chamou às 10 da manhã, porque durmo tarde e não acordei nem com os tanques... Levantei e vi uma marca de tanque a meio metro da minha janela, na cidade universitária! Fui a pé para o centro, lembro da praça principal com a estátua do Kafka, o povo chorando e os tanques soviéticos. Uma hora, ouvi uns tiros e me escondi num prédio... Morrer na Tchecoslováquia, numa doutrina em que não acreditava muito?! Puta que o pariu!

Como você escapou de lá? 
Voltei pra cidade universitária, onde estavam outros cinco brasileiros. Enquanto a gente conversava sobre o que fazer, veio uma saraivada de tiros em direção à nossa janela! Juntamos todos os colchões do alojamento e passamos a madrugada debaixo deles... No dia seguinte, liguei para a embaixada brasileira. Imagina procurar a embaixada de um país com ditadura para sair de um país comunista [risos]... O cara me colocou num trem para refugiados, fui para a Alemanha e depois pra Paris. Não vi nada na História de importante, mas na franja da História vi isso.

Estamos terminando... queria perguntar que tipo de entrevistado você se considera? 
[Rápido] Sou péssimo, não nasci pra isso. Falo mais depressa do que penso, então sai muita coisa que não quero dizer, depois leio e me arrependo. Espero que esta entrevista ajude as pessoas a se interessarem pelo filme. O filme é que interessa.

 

 

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