Está meio frio por aqui, não acha? Por sorte, não sou eu que tenho que tirar a roupa. Mesmo assim, não consigo me concentrar, ainda estou excessivamente ontem. E sempre é preciso manter a presença, pois é raro fotografar mulheres automáticas. Elas sempre precisam de uma frase feita, de um toque (e tudo tem de parecer estritamente profissional ? meus dedos são os mais profissionais do país).
Por mais que hoje as meninas nasçam pra ser sensuais, pra ser ornamentais, elas sempre idealizam. Apesar de toda disciplina ascética, de toda preparação pra essa ficção que é a sedução, as meninas sempre exageram ? é a idade. Um olho fechado demais, uma boca forçada e rolos de filme estão perdidos.
Nem sei mais que diabo cria a sensualidade. É claro que não digo isso pros meus clientes. Afinal, sou especialista, capaz de dizer quais são os melhores penteados pras xoxotas de cada época, a que tipo de padrões culturais eles correspondem ou criticam. A boceta é um universo. (Anoto a idéia pro meu artigo numa revista.)
No outro cômodo, ouço os barulhos de sempre, os mesmos risos e palavras. Engulo seco e preparo minha cordialidade. Maldito frio. Pelo menos será fácil de arrepiar os mamilos da modelo.
Ela entra na sala, acompanhada de duas maquiadoras e uma inútil. Esta talvez seja do sindicado dos aliciadores de egos, pois sincroniza cada sorriso aos trejeitos da modelo. Talvez nem seja intencional. Relaxe, as duas são lindas. Hoje.
Por favor, comece o ritual. Está frio demais pra joguinhos.
? Awwww, estava ansiosa pra trabalhar com você – diz a modelo, me abraçando e quase me derrubando. Sinto seu cheiro de alfândega.
? E eu morrendo de tesão.
Sorrio. Certas ironias nunca falham: ela joga o cabelo e cresce. Posiciono a máquina. Rápido demais.
? Deita aí.
? Como assim?
? Deita aí.
? Bem, a gente não precisa…
A equipe técnica estranha meu comportamento. Mas sorriem, pois acham que pegaram minha intenção. É mesmo?
? Todo mundo caindo fora daqui. Hoje sou só eu e ela.
Demoram alguns minutos pra me atenderem. Isso me obriga a lançar alguns sapatos e impropérios. A modelo está decidindo se está assustada ou participando de um momento artístico único.
Encosto as mãos nas pernas dela. Ela quer experimentar. Segundo a lenda, nós sabemos onde tocá-las. Hoje não:
? Como é que querem que eu fotografe uma mulher com essa quantidade de estrias?
? Es-es-tri-as?
? É? Você além de gorda é burra?
? Mas…
? Pelo jeito você não sabe a diferença entre malhar e cuidar do corpo. Totalmente desproporcional e inchada. Me recuso a…
Ela começa a chorar, timidamente. Clico.
? Eu preciso sair e…
? Precisa de porra nenhuma, vadia. Somos profissionais, não é? Vai lá no fundo e mostra essa bunda flácida pra câmera.
Ela se movimenta como um sapo e desaba em lágrimas.
? Não é isso que você queria, apontar seu traseiro pra uma lente? Chegou a alguma iluminação? Vou fazer o favor de mudar o foco, o mundo não precisa de mais um motivo de sofrimento.
Ela está acuada, a cabeça pesa e seu cabelo escorre pela nuca como que vomitando os dias de preparação e de auto-estima quimicamente induzidos. Os peitos caem sem forma e sem cuidado. O frio toca sua nuca. Clico.
? Tira a calcinha, estúpida.
Ela chora ainda mais. E soluça algo como ‘isso não pode estar acontecendo, você não pode fazer isso comigo, você não tem direito de…’.
? Tira a calcinha!
Ela obedece. Que imbecil, ela obedece. Clico. E gargalho. Vou até a bandeja em cima do criado-mudo e pego uma fatia de salmão. Jogo nela. É uma criança, incapaz de reagir. Como a fragilidade é falsa. Clico.
? Pára com isso, por favor.
Jogo mais salmão e clico. Ela se esquiva e, inconsciente, abre as pernas, deixando ver o corte da moda. Clico.
? Você acha ISTO violento?
Gargalho. Ela me olha, com a maquiagem borrada e os olhos preparados pra algo. Clico.
Silêncio.
Ela percebe. E imediatamente sua cabeça constrói uma explicação. Ela sorri, fecha as pernas e me envia aquele olhar profissionalmente sensual.
Acho que agora nós duas nos tornamos mulheres.