Encarnado nas telas
Em entrevista exclusiva, José Mojica Marins revela que descobriu o terror ao ver uma vagina e explica porque se considera um ser superior
POR KÁTIA LESSA
Para começar eu gostaria de saber se você nasceu mesmo em uma sexta-feira 13.
Dia 13 de março de 1936, Vila Mariana, era uma sexta-feira 13.
Você criou o Zé do Caixão depois de um sonho. Queria que você relembrasse essa noite...
Eu estava querendo fazer Geração maldita, um filme sobre a nova geração do Brasil, logo depois da época do Juventude transviada. Era dia 11 de outubro de 1963. Tinha alugado o estúdio para fazer o filme, mas passaria a ser outra história, justamente por causa desse pesadelo. Eu estava num jantar, eram onze da noite, e eu adormeci de cansaço. Sonhei que estava num lugar completamente em trevas, com um ser estranho que me arrastava por degraus, pedrinhas que iam machucando o corpo todo, até chegar em uma gruta onde tinha uma lápide com a data do meu nascimento e da minha morte. Eu vi a do nascimento, da morte eu não quis ver e acordei. Daí já estava lá o pai-de-santo que achou que eu estava com espírito, queriam tirar o diabo de dentro de mim. Mas não, ninguém tirou o diabo de mim! Fiquei louco com a idéia e resolvi fazer o À meia noite levarei sua alma. Nesse mesmo dia, antes das seis da manhã eu já estava batendo na casa da minha secretaria para fazer um resumo do À meia noite..., que era o filme com o Zé do Caixão.
Você cresceu dentro do cinema no qual seu pai trabalhava. O que você gostava de ver? Foi aí que você começou a gostar de terror?
Eu acho que o terror foi infiltrado em mim dentro desse cinema. Aos quatro anos eu só escutava as fitas de dentro da salinha de projeção. Foi então que um produtor querendo puxar o saco do meu pai me levou para ver um telão. Naquela época, a cada três meses eles passavam fitas educativas sobre sexo, doenças venéreas. E o que eu vejo quando entro? Um close, em primeiro plano, em detalhe, enorme! A vagina de uma mulher com gonorréia escorrendo. Meu Deus, aquilo era feio demais. A imagem daquela vagina... Eu não sabia se era o inferno, se era o limbo ou o purgatório. Até hoje, aos 72 anos essa imagem não sai da minha cabeça, é o maior terror que eu vi na vida, era muito estranho. Era uma imagem viva, pulsando.
Tem alguma outra história desse tipo?
Quando eu tinha uns seis anos, um cara que vendia batata e era muito amigo nosso morreu. Daí no velório, estava a viúva beijando o cadáver, o lugar lotado de gente. As pessoas estavam inconformadas com a morte dele e rezavam, choravam e queriam que ele estivesse vivo. Estávamos rezando, quando o defunto levantou. Não sobrou ninguém na sala, só eu. E o cara começa a perguntar o que estava acontecendo, tirando os algodões dos ouvidos e nariz. Eu expliquei na maior inocência que ele tinha morrido e que rezando a gente trouxe ele de volta. Nessas já tinha entrado o delegado com revólver, o padre já vinha gritando "vade retro Satanás!". Resultado, a mulher pediu o desquite do homem, a mãe disse que o homem não era o filho, era o diabo encarnado, ninguém mais deu emprego ou comprou batata dele, ele teve que ir pra outro bairro, e no boca a boca, ele virou um homem condenado a viver em uma solidão. Ele enlouqueceu, foi para o manicômio e lá morreu. Então pedi para o meu pai me levar, eu queria vê-lo. Ninguém queria ir, mas meu pai me levou. Eu era filho único, pedido meu era quase que uma ordem.
Você era mimado?
Muito, mas muito mesmo. Eu morava nos fundos de um cinema, e era líder da criançada. Dava ingresso pra todo mundo e depois vinham me puxar o saco. Meu pai sempre dizia que eu era muito precoce. Depois do que aconteceu com o batateiro eu passei a procurar uma explicação para a morte, como procuro até hoje. Eu acho que começamos uma nova vida em um mundo paralelo, que essa aqui funciona como uma espécie de teste.
Você acredita em Deus?
Acredito, mas não acredito no diabo. Deus fez o homem e o homem fez o diabo, inventou essa coisa toda. É o lado mau que todos nós temos.
Você veio de uma família espanhola católica, não é?
Sim, católica apostólica romana. Eu sou católico, mas não sou praticante. Gosto de imagens, guardo em casa imagens de São José, da Virgem Maria, eu acho bonito. Tudo que eu vejo da Virgem Maria por aí eu compro, eu acho bacana.
Como foi a reação na sua casa, quando você disse que ia fazer um filme de terror? Não havia filme desse tipo no Brasil, né?
Meus pais me apoiavam sempre. Ninguém aceitava bancar um filme de terror naquela época. Meu pai me deu o dinheiro que ele tinha na poupança e até vendeu o carro. Eu vendi a minha casa e todos os móveis que estavam dentro. Mandei minha mulher para a casa dos pais. E ela estava grávida. Fiquei só com um terno preto da missa de domingo e uma calça rancheira.
Você fez o roteiro pensando em interpretar o Zé do Caixão?
Não, de jeito nenhum. Meu sonho era ser diretor, escrever e dirigir. Eu queria que o Zé fosse o Milton Ribeiro, eu era fã. Mas o negócio dele era filme com mais grana. Daí, tinha um cara da televisão que ficou de fazer e aí no dia 15 às 11h da manhã ele mandou o recado dizendo que a TV não o deixaria fazer aquilo porque ele cairia no ridículo. Eu não tinha ninguém do meu lado. Eu tinha um maquiador, que era um argentino doidão, que viu que eu tinha as unhas do polegar compridas e teve a idéia.
Porque você tinhas essas duas unhas compridas antes do Zé?
Ah, era hobby! O tal maquiador conhecia um cara que fazia unhas postiças, que falou que fariam as oito restantes para mim. Em troca, ele queria que eu participasse de um programa de TV para fazer propaganda do trabalho dele. Se eu fosse, eu teria as unhas de graça. Além disso, na época eu tinha feito uma promessa de não cortar a barba. Então fui ao programa como Zé do Caixão e nunca mais fiz a barba.
A promessa dura até hoje?
Não, era para durar três meses, mas daí comecei a fazer o Zé do Caixão e não raspei mais. Durante o programa eu apresentei o Zé e disse que estava fazendo o primeiro filme de terror do Brasil. Aí o pessoal do programa me perguntou: “E se ninguém quiser ver filme de terror por aqui? Foi então que eu tive a idéia de jogar uma praga em quem não fosse ver o filme. Depois desse dia voltei para o estúdio e resolvi que eu mesmo seria o Zé. Muita gente ia acompanhar as gravações, mas era só para tirar sarro.
Você acha que ainda hoje há preconceito com filme de terror?
Muito. Um filme de terror nunca ganha prêmio. Pode até ser pela montagem, atores, trilha, até para o diretor, mas para o filme não vem. Só em festival de terror mesmo. Vai ter um festival em Porto Alegre, lá eu sei que eu ganho.
Qual seu diretor de terror preferido?
Olha, eu não tenho um preferido. Acho O Bebê de Rosemary o maior filme de terror de todos os tempos, mas nem o cara que fez conseguiu repetir algo tão bom.
Você considera a Encarnação do Demônio seu melhor filme?
Encarnação... tem suas mensagens, suas filosofias, sua ideologia própria, eu acho que é meu melhor filme. Mas só vou me considerar realizado na hora em que o povo aplaudir, que a crítica aplaudir, diretores de cinema aplaudirem, os jornalistas gostarem demais. Eu acho que é a Bíblia do terror da América Latina. Um filme para o médio e para o meu povão.
Você já tem outro roteiro?
Tenho um que está sendo feito. [Grita para a mulher: "Nilce! Qual é aquela fita sobre tóxicos e adolescentes em conflito?" Nilce: "Adolescentes em Conflito"] É uma fita pra mostrar todo o problemas dos tóxicos e das drogas.
É de terror?
É um terror natural, porque o vício e o mundo do traficante já é um terror. Mas eu mostro que o traficante tem mãe, tem esposa, que ele tem filho e não quer que aconteça isso com a família dele, e acaba vendo que ele é humano como a gente. Mas a filha dele se mete em encrenca e quem vai salvá-la são pessoas que ele acha que tem que morrer.
Quem é o mocinho dessa história?
Não tem exatamente um mocinho, tem muitos vilões. Pode ser até que eu participe, mas sempre como vilão. O Zé do Caixão é somente o contador de histórias, ele abre o filme dizendo que a trama se passa em São Paulo. Esse é meu maior sonho.
Esse foi o primeiro filme da trilogia em que a voz do Zé não foi dublada. Foi complicado?
É, na trilogia os dois foram dublados, esse é o primeiro que não é. Mas o cara que morreu tinha a voz bem parecida com a minha. Ele era muito bom. Minha voz é meio estranha, é um grave diferente, e ele tinha isso.
Durante as filmagens de alguns de seus trabalhos aconteceram coisas estranhas, morreu gente... E nesse?
A coisa mais estranha que aconteceu foi a morte de Jece Valadão, o maior monstro sagrado do nosso cinema. É estranho, muito estranho. Um outro funcionário caiu e estourou seis costelas. Aconteceu uma série de coisas, mas eu acho normal quando você trabalha com centenas de pessoas, alguém está predestinado a morrer. Não precisa ter medo.
Você tem medo de alguma coisa?
Tenho medo de todos os bichos, mas o Zé do Caixão dorme com aranhas, ratos. Eu tenho medo sim de morrer, mas é porque eu não sei o que será dos meus netos. Essa violência me mete muito medo, você sai de casa, mas não sabe se volta. Esse é o drama do Brasil.
Como você imagina seu pós-morte, para onde você acha que vai e como é esse lugar?
Eu me considero um ser superior. Pra mim é outra dimensão, mundo paralelo extraterrestre. Eu já fui antena de extraterrestre em Sorocaba. Em 1985 um disco voador apareceu por lá e eles disseram que eu era o único que podia me comunicar. Me colocaram em cima de um morro, numa antena enorme, e não acontecia porra nenhuma. Mas o morro ficou cheio de gente vendendo cachorro quente e pipoca. Puta que o pariu, desse jeiro não ia baixar nada lá mesmo. Mas eu quero me comunicar ainda, me comunico através de sonhos.
Mas você não imagina o lugar para onde você irá? Você acredita em Paraíso?
Não existe o Paraíso, como o inferno é aqui, o Paraíso também é . O Paraíso é viver bem, com quem você gosta. É não ter problema financeiro e de saúde. Mas acho que deve ter um mundo paralelo, uma outra dimensão, sei lá... Outra galáxia que tenha outros planetas, e a gente está aqui numa espécie de teste. Você está aqui para cumprir uma missão, se não cumpre, volta como se fosse reencarnação.
Você começou a fazer cinema dentro de um galinheiro. Como foi agora ter uma produção, uma equipe grande, dinheiro? Qual a diferença?
Vamos citar o ser humano, por exemplo, aos doze anos você acha uma pessoa que gosta, você se sente bem, mas por algum motivo ela viaja ou sofre algum acidente e não quer mais se encontrar com você, ou morreu. Você teve um amor interrompido, sonhos interrompidos. Passam-se dez anos e você tá vivendo, namora com um, com outro, e de repente surge aquele que começa a fazer seu coração bater como aos 16 anos. Vocês tentam e dá certo, daí casam e vão viver felizes. Eu tive algo bonito que teve uma interrupção durante muitos anos e agora veio a complementação. Eu me vi agora completo, ma ainda sem os filhos. Se o povo gostar, daí sim será a complementação.
É verdade que você quer se candidatar a Deputado Estadual?
Era para eu sair vereador, mas eu teria que parar o Canal Brasil durante três meses. Então não posso. Mas eu ia sair com o Geraldo.
Por que o Alckmin?
O primeiro homem que nos deu dinheiro para o filme Encarnação... Foi o Geraldo e eu desfilei com ele por todas as ruas de São Paulo, foi fantástico. Ele nos deu 500 mil para ser aplicado e só depois é que fomos receber o dinheiro do Lula. Geraldo foi o primeiro homem que apostou na gente. É um homem que gosta de cultura, e se gosta de cultura está comigo. Eu devo sair em 2010 para Deputado Estadual.
E para terminar, qual o segredo para ter unhas tão fortes?
Eu não passo nada, mas no passado já usei vitalizante. Um antigo que fortalecia as unhas das mulheres, que segurava qualquer rachadura. Se eu encontrar a receita daquele antigo, vou lançar o vitalizante do Zé. Mas só se for do antigo. Original.