Eliezer Batista

Cinco vidas em uma: a história de um dos maiores empresários da história do Brasil

por Paulo Lima em

“O que me impulsiona e me dá uma força muito grande é o outro. É saber que sempre posso fazer alguma coisa para alguém.” Quando, aos 88 anos de vida, o homem considerado o grande nome do empreendedorismo nacional, ministro duas vezes e conselheiro de todos os presidentes da história recente do Brasil, responsável por desenvolver a Vale do Rio Doce e transformá-la em uma das maiores empresas do mundo aponta que seu foco nunca esteve em si mesmo, mas no outro, a ideia de que possa haver algo que mereça a denominação de capitalismo consciente pode ser acalentada. Ex-nadador, ex-cantor de ópera, pai do controvertido Eike Batista, 178 visitas ao Japão, pioneiro nos conceitos de desenvolvimento com sustentabilidade, poliglota e botânico autodidata, Eliezer Batista é um caso a ser estudado. Um cidadão que viveu cinco vidas em uma e que acumulou o mais vistoso patrimônio que se pode desejar: respeito, bom humor e leveza

 

Alguns dias atrás, uma nota publicada na coluna de um jornalista bem informado dava conta de que Dilma Roussef havia convocado um cidadão para uma audiência a portas fechadas em Brasília. Conhecida pela sua objetividade às vezes exagerada em reuniões, a presidenta ficou por uma hora e meia ouvindo atentamente as opiniões e ideias de um senhor de 88 anos. Hoje mais lembrado por ser o pai de Eike – o mais rico e talvez o mais controvertido empreendedor brasileiro –, esse homem é na verdade pai de outros seis filhos e também da companhia Vale do Rio Doce, da relação diplomática e econômica do Brasil com o Japão e de Carajás, apontado como o primeiro empreendimento autossustentável do mundo. Graças a sua visão estratégica e capacidade de realização frequentou a lista de ministeriáveis de todos os presidentes brasileiros das últimas cinco décadas, tendo, de forma mais ou menos oficial, funcionado como conselheiro de quase todos eles, incluindo agora a primeira mandatária do sexo feminino. Conceitos como sustentabilidade, gestão humanizada e moderna de pessoas e outros que começam só agora a frequentar capas de livros e páginas de revistas de negócios foram há muito antecipados por esse senhor e por suas equipes, que desde cedo apostaram na noção de interdependência como ideia estruturante para qualquer projeto empreendido pelo ser humano.

Aos 88 e contando, Eliezer Batista é todos esses e muitos outros. À luz do conceito que ajudou a antecipar, está interligado a cada Eliezer surgido ao longo de sua trajetória, a cada decisão pequena ou grande que tomou, com efeitos positivos e negativos em si mesmo e no “entorno humano”, como gosta de dizer. Com uma memória prodigiosa sobre as pegadas de carbono e de outras naturezas que deixou pelo mundo desde que cruzou as portas da Vale pela primeira vez, em 1949, Eliezer tem uma noção tão clara sobre si próprio que relativiza sem falsidade ou hipocrisia a importância de tudo aquilo que fez e criou. “De um modo geral, nossa maneira de raciocinar é ver o todo pela parte, e isso é errado”, ele esboça um sorriso, antecipando uma das muitas analogias a que recorre para dar fluência ao raciocínio: “Veja a visão do dentista, olhando sempre para baixo e para dentro, investigando a sujeira. E a da águia, enxergando tudo do alto, interligadamente. Nada contra dentistas, mas imagine você visto pelo dentista e visto pela águia”. Gargalhada. “É muito diferente.”

Pavão de favela
A casa de Eliezer Batista, numa encosta do Jardim Botânico, na zona sul do Rio de Janeiro, diz muito sobre ele. Ampla, bem localizada, de simplicidade definida pelo próprio como “escandinava”, está longe dos arroubos associados ao filho Eike, como um carro de R$ 1 milhão estacionado na sala. “É uma casa prática”, diz o amigo e ortopedista Leonardo Metsavaht, “voltada para as coisas de que gosta: estudar, ouvir música...” Seu maior luxo está na vista privilegiada do jardim para as montanhas ao fundo. A acumulação nunca esteve entre as prioridades que o moveram. O trabalho sempre foi encarado sob a perspectiva do bem comum, do serviço ao interesse coletivo, da geração de significado. Eliezer recorre a outra de suas analogias para expor o que considera a maior ameaça à sociedade contemporânea, que considera “em decomposição”. “Quando chega ao máximo de seu egoísmo, o homem se torna um pavão de favela: ele muito bem e tudo em torno na miséria”, diz. “De que adianta? Mas, se ele se despir do egoísmo, a partir de certo ponto em que garanta um nível de conforto razoável, terá mais prazer em beneficiar o outro do que a si próprio. Entende? É a sensação de justificar sua presença aqui neste mundo que não conhecemos e nunca vamos conhecer, mas que nos esforçamos para compreender. O que eu estou fazendo é aquilo que consigo compreender.”

Eliezer Batista saiu cedo de sua Nova Era natal para estudar em colégio interno em São João Del-Rei (MG), seguindo para Curitiba na década de 1940, onde se formou engenheiro civil na Universidade Federal do Paraná. Na capital paranaense, onde viviam alguns de seus parentes, chamava a atenção pelas roupas e acessórios considerados extravagantes pelos colegas, como uma gravata-borboleta vermelha, que lhe rendeu o jocoso título de barão. Recém-formado, foi trabalhar na companhia Vale do Rio Doce, onde ocupou vários cargos, sendo nomeado presidente pela primeira vez em 1961. Sob seu comando, a companhia deixou de ser uma pequena produtora de minério de ferro para se transformar em um gigante mundial da mineração. Na década de 1980, Eliezer cravaria outro feito à frente da Vale: o Projeto Carajás, que explorou a mais rica área de mineração do planeta, localizada em uma gleba amazônica no Pará, em Goiás e no Maranhão. “Foi quando, pela primeira vez no país, se buscou trabalhar de maneira integrada com os três pilares do desenvolvimento sustentável, o econômico, o social e o ambiental”, diz a professora e pesquisadora Inguelore Scheunemann, sua segunda mulher e parceira nos projetos atuais – e “para os próximos dez anos”, ele faz questão de frisar.

 

“Hoje eu costumo dizer que uso três antidepressivos: o riso, uma boa noite de sono e a música”

 

Ao longo das mais de quatro horas de conversa, não chamaram a atenção “apenas” a inteligência, a memória fenomenal e a erudição de alguém que fala sete idiomas e transita com desenvoltura por quaisquer temas de épocas distintas como se fosse uma versão viva (e aprofundada) do Google. A verdadeira sabedoria de Eliezer está mesmo na simplicidade. “Não pense você que nasci com essa vocação”, ele diz, observando que não se sente velho, apesar de já ter passado por “três momentos muito perto da morte”. “Não, isso foi sendo construído. Acendi uma luz e comecei a enxergar melhor do que quando estava no escuro. Fui aprendendo no decorrer da minha própria experiência humana.” É o que se verá a seguir.

Para começar, o certo é dizer Eliézer ou Eliezér?
At your option [risos]. Esse nome foi ideia do meu pai, que vivia lendo a Bíblia e batizou a família toda com nomes hebreus. Em 1973, no auge da crise do petróleo, passei o maior aperto na Arábia Saudita por causa do meu nome. Na época, eu dirigia o escritório da Vale na Europa e viajei para lá com técnicos do grupo Korf, uma siderúrgica alemã que era nossa parceira no Oriente Médio. Lembro que havia uma grande animosidade contra os judeus. No hotel, em Riad, já haviam checado toda a nossa documentação e eu estava esperando pelo meu quarto quando um policial me chamou: “Mas o senhor tem nome judeu, né?”. Respondi: “Olha, na minha terra se escreve Eliezer, mas se pronuncia Ahmed” [risos]. E ele me liberou.

A gente está conversando há poucos minutos e já deu para perceber que o senhor tem um enorme senso de humor. De onde ele vem?
É uma coisa curiosa, veio com o tempo. Na juventude, eu levava as coisas muito a sério, vivia ocupado com a engenharia, com a matemática, com a física. Era um bitolado, como se diz. Logo que me formei, um americano que trabalhava comigo na companhia Morrison Knudsen, durante a obra da estrada de ferro Vitória-Minas, disse que eu estava perdendo tempo em ser assim, que era preciso olhar para os lados, ter uma visão mais ampla das coisas. E no decorrer da vida outros episódios ajudaram a abrir minha cabeça. Na década de 1970, o aeroporto de Beirute fechou e passei três dias lá. Foi um caos: faltou água e comida, as crianças chorando, aquela coisa toda. Ao ver meu nervosismo, um francês, veterano da Segunda Guerra, puxou conversa e me contou sobre o que havia vivido na trincheira. Na hora comecei a achar que aquele problema no aeroporto era muito vagabundo. No final, ele disse que eu precisava aprender a rir e me aconselhou a ler Henry Bergson, um filósofo francês que estudou o riso. Aquela dica foi preciosa. Hoje costumo dizer que uso três antidepressivos: o riso, uma boa noite de sono e a música. Eu canto no banheiro todos os dias para a infelicidade da minha mulher [risos].

E funciona?
Claro! Adoro música, acho que é a única arte capaz de nos fazer levitar. No passado, alguém descobriu que eu tinha voz com potencial para me transformar em um profissional! Para mim, cantar no chuveiro pela manhã por 15 minutos é um santo remédio contra o tédio e a depressão. É gozado, a gente não dá importância para essas coisas simples. Mas elas são providenciais, principalmente nos momentos difíceis. E olha que eu já descasquei muito abacaxi na vida, viu? Mas isso tem um lado bom, porque a gente aprende assim, in the hard way.

Quando a gente estuda sua biografia tem a impressão de que ganhar dinheiro nunca foi uma prioridade.
Acho que dinheiro é necessário para trazer um certo conforto, mas ser rico nunca foi meu ideal. Sempre fui movido pelo desafio de fazer. Talvez alguns me confundam com um dos meus filhos, Eike, mas ele também não tem isso como prioridade, não, só que se exprime de outra maneira. Quando ele fala em riqueza, é de criar riqueza, e não de ficar rico. Tanto que Eike poderia estar vivendo em Paris como muitos aí fazem, né? Vão pra Miami ou pra qualquer lugar na França. Como dizem por aí, dinheiro não traz felicidade, mas ajuda o sofrimento em Paris [risos]. Mas tudo o que o Eike tem está investido em empreendimentos nacionais que, por sua vez, geram empregos no Brasil. É uma das pessoas mais generosas que conheço, não tem nada de avarento.

O senhor fica incomodado com essa maneira de Eike se expressar?
Não, porque o conheço muito bem. O que me incomoda é o fato de Eike ser mal interpretado.

Li numa entrevista do Eike que, quando ele foi morar fora, o senhor mandava uma mesada pra ele que acabava antes do final do mês. Então ele tinha que se virar. Como é que um cara que administrava mal a própria mesada consegue virar um administrador competente?
Porque a mesada não era suficiente pra sobreviver [risos]. Tá vendo como é que a gente pega? [Mais risos]. Mas foi bom pra ele, porque aprendeu a se virar sozinho. Ele fez um esforço tremendo, ele andava na Amazônia, voava naqueles aviões teco-teco, uma coisa de doido aquilo. Ele tem uma coragem incrível, pouca gente faz isso. E isso é genético, né? A mãe dele era uma pessoa assim também, determinada.

Outro dia entrevistei um empresário e fiz uma pergunta que o pegou de surpresa. Indaguei se o pai dele era carinhoso, se o abraçava, se o beijava na infância. Ele parou, ficou me olhando e me deu uma resposta muito sincera, de que não tinha nenhuma lembrança do pai brincando com ele. Como foi sua infância? Seus pais eram carinhosos?
Meu pai tinha sangue irlandês, era sisudo e pouco afeito a manifestações de carinho. Mas a gente andava a cavalo juntos, conversava bastante. A questão é que não convivemos muito porque saí de casa cedo para estudar em colégio interno e depois fui fazer faculdade em Curitiba.

 

“Uma população de analfabetos escolhe mal seus deputados, os mesmos que vão fazer leis sobre assuntos que muitos não têm a menor ideia do que se trata”


E como foi a sua relação com seus filhos na infância deles?
Não passei muito tempo com meus filhos quando eram crianças. Eu vivia viajando a trabalho e eles reclamam disso até hoje. A mãe deles, Jutta (1931-2000), era alemã, vinha de uma família de militares, tinha uma formação rígida, mas, por outro lado, era muito carinhosa. Ela cuidava de tudo, foi, sem dúvida, a pessoa mais importante da minha vida. Eu a conheci aos 30 anos, quando já estava na Vale e fui estudar logística em Hamburgo, na década de 1950. Na época, minha sogra virou para mim e disse: “Olha, vocês precisam ter 12 filhos”. “Tô perdido”, pensei [risos]. Tivemos sete: Monika, Lars, Eike, Helmut, Dietrich, Werner e Harald.

Se pudesse, o senhor faria diferente hoje?
Eu poderia ter aproveitado mais o contato com meus filhos naquela idade que é a mais gostosa, até os 10 anos. Mas penso que não tinha opção, porque se eu não tivesse trabalhado como trabalhei talvez eu não pudesse ter educado os filhos da mesma forma. Eu achava muito mais importante pensar neles do que em mim mesmo.

A gente falou do Eike, mas e seus outros filhos? Que caminho seguiram?
Dois deles trabalham com Eike. Outro é consultor e mora nos Estados Unidos. Minha filha, Monika, arquiteta, também vive lá, em San Francisco. Tenho ainda um filho médico e outro ligado às artes que estão no Rio. Todos eles me enchem de orgulho, falam quatro, cinco idiomas. Monika, por exemplo, lê e escreve em japonês.

Nas últimas décadas o senhor foi conselheiro de quase todos os presidentes brasileiros, fosse como ministro, secretário ou mesmo de maneira informal. Que conclusão tirou dessa experiência?
Que sem educação a gente não vai chegar a lugar algum. Uma população de analfabetos, por exemplo, escolhe mal seus deputados, os mesmos que vão fazer leis sobre assuntos que muitos não têm a menor ideia do que se trata. Acho que outro problema sério do Brasil é a corrupção, a falta de ética na lida com o dinheiro público. Na Roma Antiga havia um magistrado chamado Lucius Antonius Rufus Appius que costumava vender, a quem pagasse mais, as sentenças que expedia. Como o nome era grande, ele abreviou para LAR. Appius. Esse senhor confundia as contas públicas com as contas privadas, como muitos que a gente conhece hoje no Brasil. A palavra larápio vem daí.

Por que o senhor foi perseguido durante o regime militar?
Para você ter uma ideia, uma das razões foi que eu falava russo... Durante a faculdade fui tentar aprender piano, mas meu professor, um alemão, gostava mais da minha voz e me transferiu para o coro ortodoxo. Como quase todas as peças do canto gregoriano eram cantadas em russo, não tive alternativa: fui aprender russo. Na época de estudante em Curitiba e, mais tarde, quando morei em Bruxelas, fiz muitos amigos russos e acabei participando da Academia Russa de Ciências. Durante o governo do Jango, a Vale construiu um porto em Bakar, na Iugoslávia, com dinheiro do governo iugoslavo, para atingir o centro da Europa com cargas graneleiras. E, como forma de agradecimento, Jango convidou o marechal Tito para fazer uma visita ao Brasil e eu o acompanhei aqui falando russo o tempo todo. Aquilo foi um golpe contra mim mesmo [risos]. Quando a revolução estourou fui tachado de comunista pelos militares. Basicamente, além de falar russo, eu tinha sido ministro de João Goulart e tinha fama de tratar bem os trabalhadores da Vale. Mas sempre fui um técnico, não tinha nada a ver com política, nem sabia o que era comunismo direito.

E o que aconteceu com o senhor?
Na época, perdi o cargo de presidente da Vale. Mas poderia ter sido pior do que isso. Eles queriam me cassar e me prender. Fui salvo pelo [empresário] Azevedo Antunes. Ele era o maior minerador do país e também amigo dos militares, e me convidou para criar em Minas Gerais uma companhia mineradora, a MBR, que bem mais tarde foi comprada pela Vale. Depois dessa experiência fui morar na Alemanha, um país que adoro e no qual vivi bastante tempo.

 

“Não cultivo mágoas nem fico preso aos obstáculos do passado. A pior coisa que pode acontecer para qualquer um é perder a vontade de viver”


Como é essa sua ligação com o país?
Ah... morei muito tempo lá, minha primeira mulher era de Hamburgo. E alemão quando é determinado você sai da frente, porque ele faz mesmo. É um povo formidável, eu tiro o chapéu. Tenho uma vocação pra alemão muito grande, vou te dizer. [Risos]

Como é ter 88 anos de idade?
Tem coisas boas e ruins [risos]. Estou sempre olhando para a frente, assim não cultivo mágoas nem fico preso aos obstáculos do passado. A pior coisa que pode acontecer para qualquer um é perder a vontade de viver. Na hora da doença, ter espírito determinado ajuda mais do que remédio.

O senhor come de tudo ou tem alguma restrição alimentar?
Eu já comi de tudo, mas hoje sou seletivo. Depois de um câncer aprendi que hoje a maior parte das doenças tem origem na comida que a gente consome.

Houve espaço para os esportes na sua vida?
Na faculdade, quando morava em Curitiba, fazia natação e competia na Argentina. Os campeonatos eram patrocinados pelo [presidente Juan Domingo] Perón. Nos anos 1940 também pratiquei saltos ornamentais de plataforma e polo aquático, apesar dos meus braços curtos. Nunca fui vaidoso, mas conquistei um corpo apolíneo na época.

Quer dizer que o senhor era um galã?
Eu não diria galã, mas dava muita sorte com as mulheres [risos]. Mesmo assim nunca fui namorador. Casei com 30 anos...

O senhor tem algum hobby?
A botânica. Transformei minha propriedade em Pedra Azul, no Espírito Santo, em uma espécie de laboratório onde faço a adaptação de espécies florestais de climas temperado e semitropical. Lá temos a única coleção completa de araucárias do mundo, com 27 variedades.

E o senhor gosta de arte?
Minhas paixões são a natureza e a música, mas não deixo de admirar um quadro bonito. Por falar em arte, você conhece minha história com Salvador Dalí?

Não conheço...
Eu me sentei ao lado dele, por acaso, em um voo Nova York-Madri. Quando atravessamos uma área de turbulência Dalí ficou nervoso e começou a gritar: “Que caia, que caia!”. A aeromoça trouxe um uísque para acalmá-lo e eu, na mesma situação, também pedi uma dose. No quinto uísque ele já estava me chamando de Dom Batista e eu o tratava por Dom Salvador. Pelo meio da conversa confessei que não entendia seus quadros. “Tampouco eu”, disse Dalí [risos]. Ficamos amigos e cheguei a visitá-lo na casa que possuía na Costa Brava, na Espanha, e depois nos Pirineus. Era um maluco adorável.

O senhor tem uma memória invejável. Qual é o segredo?
Os italianos costumam dizer que os velhos são crianças que crescem ao contrário. Ou seja, à medida que envelhecemos lembramos de coisas cada vez mais distantes. Mas a memória é como músculo, você tem que exercitar. No meu caso, leio todos os dias: revistas científicas, jornais brasileiros e estrangeiros... Sempre fui muito reflexivo e costumo pensar bastante pela manhã, entre o acordar e o levantar, que no meu caso acontece entre cinco e seis da manhã. Nesse período de sono leve pensamos de forma mais rápida, o que é um ótimo exercício cerebral.

É difícil encontrar alguém como o senhor, que tenha viajado 178 vezes para o Japão. Por que tantas vezes?
Na década de 1960, o Brasil tinha minério em abundância, mas ninguém queria comprá-lo. O Japão precisava do minério para reerguer sua indústria siderúrgica, que tinha sido destruída na Segunda Guerra. Como presidente da Vale vi ali uma oportunidade de negócio para o Brasil. Na época, Estados Unidos e Europa não queriam vender minério para os japoneses. Foi por isso que viajei dezenas de vezes para o Japão entre os anos 1960 e 1980. Eu só me arrependo de não ter ajudado o Brasil a estreitar também os laços científicos e culturais com o Japão, a exemplo do que fez a Coreia do Sul. Nenhum país fica rico exportando apenas matéria-prima. Hoje, quem não apostar no quadrinômio pesquisa, ciência, tecnologia e inovação está fora da civilização moderna.

O senhor parece ter vivido cinco vidas em uma. Qual é seu legado?
Quando saiu o documentário sobre minha vida muita gente me pediu uma cópia para exibir para os filhos ou netos. Meu objetivo ali foi mostrar para a juventude brasileira que ainda há muito a ser feito por este país, basta ter força de vontade. É preciso sonhar com projetos que gerem empregos, melhorem a vida das pessoas. No final das contas, é isso que dá a sensação de que foi útil sua passagem por este grande pensionato que é a Terra [risos]. Os franceses costumam dizer l’appétit vient em mangeant, ou seja, o apetite vem enquanto comemos. Não nasci com a vocação de ser empreendedor, foi uma coisa que aprendi ao longo da vida, com o contato humano.

 

“Não diria que eu era um galã, mas dava muita sorte com as mulheres [risos]. Mesmo assim, nunca fui namorador”


Hoje em dia, os grandes empresários são unânimes em dizer que um dos fatores mais importantes para o gerenciamento competente é cuidar do ser humano. Ou seja, saber encontrar, escolher, estimular as pessoas. Aparentemente o senhor já sabia disso há muito tempo e adotou práticas a partir da década de 1940 que hoje são divulgadas como novidades em livros de management. Esse seu olhar holístico é intuitivo?
Não foi nada intuitivo, mas fruto de experiência própria. Durante a ampliação da estrada de ferro Vitória-Minas, a miséria no vale do rio Doce era assustadora. Ali não bastava apenas contratar mão de obra, era preciso dar alimentação, moradia, educação. Não fizemos isso por filantropia, mas porque os trabalhadores rendiam mais assim. E na minha trajetória profissional nunca deixei de aproveitar uma ideia melhor do que a minha. Acho que o valor está no trabalho em equipe, é fazer com que todos se sintam orgulhosos de participar de determinado projeto.

Recentemente, vi a palestra de um prêmio Nobel de economia que a certa altura disse que a economia está cada vez mais próxima de alguns conceitos filosóficos. Em linhas gerais, é como se a economia estivesse tentando medir o que é felicidade. O senhor acredita na ideia de felicidade?
Os italianos defendem tudo isso de uma maneira muito bonita, dizem que a felicidade é uma forma de pensar. Quer dizer, nós temos a capacidade de nos tornarmos felizes ou infelizes. Se felicidade pra mim, por exemplo, for acumular bens, estou perdido: vou me tornar avarento e
egoísta. A prioridade para mim é conhecer bem a si próprio e as pessoas com quem você convive ou que estão ao seu redor. Aliás, isso é uma coisa muito importante que você aprende quando pensa em física quântica.

A física quântica busca essa ponte entre a ciência e a espiritualidade. Sendo um homem da ciência, um engenheiro, qual é sua ligação com a espiritualidade?
Ah, é muito grande. Mas penso a espiritualidade no âmbito de energia, e não da religião. A religião surgiu como um conjunto de regras que buscava a disciplina para, assim, permitir a convivência entre os homens. Isso se justificava no passado, nos primórdios da humanidade, mas essa necessidade é questionável nos dias de hoje, quando já absorvemos essas regras da convivência. Todos nós somos originários do que defende a teoria do campo quântico, ou seja, absorvemos energia para formar matéria. A vida surge daí e desaparece da mesma forma. Li recentemente um livro fantástico, O grande projeto, escrito pelo [físico britânico] Stephen Hawking [em parceria com Leonard Mlodinow], que traz teorias sobre a criação do universo e questiona a intervenção divina. De acordo com o livro, o mundo não precisa de Deus para funcionar. Eu vou muito no pensamento de Hawking. Minha crença é na energia.

A gente lida muito mal com a ideia de morte. Às vezes, vejo mães que não deixam as crianças verem um animal morto e evitam falar desse assunto com os filhos. Como o senhor, aos 88 anos de idade, lida com o assunto finitude?
Um poeta alemão já disse que o problema não está na morte, mas no morrer. Ou seja, o que assusta é o sofrimento físico e mental. Eu já passei por três momentos muito próximos da morte. Primeiro você pensa nas pessoas da família, segundo naqueles que dependem de você, e terceiro, e muito importante, é se eu fiz mal para alguém. Então o que me impulsiona, e me dá uma força muito grande, é o outro. É saber que sempre posso fazer alguma coisa útil para alguém. Hoje você vê a sociedade em decomposição no mundo inteiro por conta do egoísmo. Esse é o pior defeito do homem. Agora, se você se despir do egoísmo, a partir de um certo ponto que você tenha recursos pra manter um nível de conforto razoável, você tem mais prazer em fazer um benefício para o outro do que pra você mesmo.

 

“O que me impulsiona e me dá uma força muito grande é o outro. É saber que sempre posso fazer alguma coisa útil para alguém. A sociedade está em decomposição por conta do egoísmo”


Agora, passando para uma finitude mais ampla, digamos... Por tudo o que acumulou de conhecimentos, de observação, de vivência, o senhor é otimista em relação ao futuro da humanidade? A gente sai do buraco ou estamos caminhando para o abismo?
Acredito muito na capacidade humana de engenharia, vamos dizer assim. De, através da ciência, conseguirmos sair desta situação em que nós estamos hoje. Muita coisa já está sendo feita, há muita intervenção positiva, mas não ainda com a intensidade devida. Então, eu acredito na humanidade, que temos condição de sair disso, se houver incentivos e apoio àqueles que podem apresentar saídas. Agora, se não fizer isso, nós corremos um risco muito grande de afundar.

Eliezer, o senhor vai fazer 88 anos (o empresário fez aniversário duas semanas após a entrevista)... A festa já está pronta?
Não tem festa. O importante é você estar com a cuca em dia, e eu não tenho vestígios de Alzheimer. E, se tem energia, você vai substituindo peças aqui e ali, igual a automóvel [risos].

Antigamente não conhecíamos ninguém de 90 anos, hoje, tem o Oscar Niemeyer produzindo aos 105... Considerando esse caso, quais são seus planos pros próximos 17 anos?
[Risos] Se fossem nos próximos dez eu diria, mas 17...

Nos próximos dez então, vamos ser mais modestos.
Ah, continuar o que eu faço com minha mulher, nós trabalhamos juntos e meu maior estímulo é trabalhar com ela.

Pra gente finalizar, se o senhor tivesse que escolher uma frase pra resumir sua vida, qual seria?
Resumir a minha vida numa frase... Acho que eu fiz aquilo que estava dentro do meu alcance... E só, né?

Crédito: Arquivo Pessoal
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Crédito: Murillo Meirelles
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Crédito: Ana Branco/Ag. O Globo
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