Eles não estão para brincadeira
O autorama já foi brinquedo, mas agora é coisa séria - até demais
Oito carros estão posicionados no grid de largada. Os boxes estão vazios, mas preparados para o pit stop. Em pé, os pilotos olham atentamente para o fiscal da prova, esperando o sinal para largar. Nenhuma luz se acende, e as máquinas disparam na reta em direção à primeira curva; um “valendo” faz as vezes de luz verde. Começava naquele domingo mais uma das baterias do Campeonato Paulista de Automodelismo de Fenda.
Praticado no Brasil desde os anos 60, o hobby é mais conhecido como autorama. Quando estávamos no auge do nosso desempenho na Fórmula 1, os campeões Ayrton Senna e Emerson Fittipaldi estampavam as caixas do brinquedo que era o desejo da maioria dos garotos. “Na época, o sonho de consumo era, ao invés do Playstation 2, ter um autorama, que custava duas bicicletas”, conta Paulo Francisco Gonçalves, presidente da União de Pilotos de Automodelismo de Fenda (organizadora do campeonato paulista). Mudou bastante o perfil dos aficionados desde então. O público agora é composto basicamente por adultos que eram crianças na era de ouro do autorama. É fácil notar isso dando uma passada por algumas das pistas de São Paulo e na peleja pelo título de melhor do estado. A brincadeira é coisa de adulto hoje em dia.
"Isso aqui não é coisa pra moleque, é pra gente adulta"
Apesar de ser um hobby, a tensão que se via na pista Talladega, em São Bernardo do Campo não deixava dúvida de que o pessoal estava levando o campeonato a sério. Uma maioria de quarentões e cinquentões disputava volta a volta (ganha quem completar o maior número delas) as baterias. A cada troca de fenda (são oito ao todo; todos andam em cada uma delas), os carros eram jogados por cima da pista para quem “fazia o boxe”. Troca de pneus, lubrificação, limpeza do contato elétrico, um pit stop de verdade, mas em miniatura. Os boxes são caixas propriamente ditas, de madeira ou metal, como as de pesca. Pequenas gavetas repletas de eixos, coroas, motores e centenas de micro-ferramentas fornecem o necessário para que o piloto e o carrinho continuem a rasgar as pequenas curvas e retas – uma pista oficial, chamada Blue King, tem 47 metros de extensão. Ninguém conversa, ninguém ri; durante as provas, a concentração é total. Ao longo da pista ficam “recolocadores”, responsáveis por reposicionar em sua fenda um carrinho errático – basicamente, são as pessoas que não estão participando daquela bateria e vão correr na próxima. Se não se apressam ou erram de fenda, a reclamação (no melhor dos casos) é imediata.
“Na década de 70, 80, [o público] era mais adolescente. Depois, passou a ser mais adulto. Na verdade, são os adolescentes daquela época. Hoje veio um que brincava quando garoto e apareceu depois de não sei quanto tempo”, diz Antonio José Gomes Teixeira, 53, o Toninho, dono da pista Monza, em Moema. O “ex-garoto” que acelerava seu velho carrinho num sábado à tarde era Fernando Rene Pinheiro Coelho, 40, que trabalha com construção civil. Apesar de não ter ido mais a autoramas - “fiquei 20 anos parado” -, ele não se desfez de seu equipamento. “Eu corria quando tinha 12 anos. Voltei hoje a brincar”, declara, entusiasmado.
Brinquedo caro
Quando se pergunta aos pilotos ocasionais e donos de pista o motivo do sumiço dos jovens, o alto custo dos equipamentos é apontado recorrentemente. Para começar na categoria Bolha (carrinhos com carenagens flexíveis que podem atingir altas velocidades) não se gasta menos do que 300 reais: 280 no carro e 70 no controle. Fora as peças de reposição – um par de pneus sai por 25 reais, por exemplo. “Nos anos 90 ficou muito como a Fórmula 1. Você comprava um chassi num ano, no outro tinha que jogar tudo fora e comprar tudo de novo. O pessoal começou a fugir do consumo excessivo de equipamento”, analisa o presidente da UPAF que também é proprietário da pista Parolu. E se as corridas são levadas a sério, não poderia ser diferente com o equipamento. “Isso aqui não é coisa pra moleque, é pra gente adulta. Tem que mexer, saber de mecânica. Um moleque vai destruir tudo”, Toninho constata.
Jovens podem ser a minoria, mas não estão extintos do autorama. Baterias da categoria júnior ainda ocorrem, apesar do esvaziamento. “Hoje, no Bolha, temos só seis crianças. Antigamente tínhamos três baterias [o que totaliza 24 participantes]”, contabiliza Daniel Sanches Amorim, 30, gerente da pista Indy 500, em São Paulo. Lucas Batista Veríssimo, 26, que corre há dez anos, não é criança, mas é jovem em relação à maioria dos praticantes de autorama. Morador de Santos, ele viu de perto o declínio do hobby: “Parei de correr por dois anos porque não tinha mais pista lá”. Seu irmão Guilherme, de 13 anos, pegou gosto graças a Lucas e à disposição do pai, Dorival, que os acompanha em todos os campeonatos.
Por volta das 16h30 daquele domingo acabou mais uma das etapas mensais do Campeonato Paulista. Carrinhos recolhidos, boxes fechados, o bom humor corria no lugar dos pequenos bólidos. Enquanto as dívidas eram acertadas (inscrição do campeonato, par de pneus, coxinha, refrigerante) Paulo, o presidente, via um bom futuro para o hobby ao qual se dedica há 31 anos: “A gente vê [que as coisas estão melhorando] pelo número de lojas que estão abrindo no Nordeste e no interior de São Paulo. Eu tenho uma fábrica de produtos de autorama, eu noto que a coisa está voltando; no último mês já melhorou bastante”. Segundo ele, as crianças que têm contato com o autorama são justamente os filhos dos adultos que vão às pistas relembrar a infância. Como convencer os mais novos a deixar os jogos de videogame de lado e se arriscar numa Blue King, pilotando um Bolha? Daniel dá a resposta: “A vantagem de participar da competição é não ficar fechado o dia inteiro. Ele vai conhecer outras crianças e pessoas de outros lugares, vai interagir. Isso vale também para os marmanjos”.
Vai lá:
Parolu Automodelismo
Av. Santo Amaro, 214, Itaim Bibi, São Paulo;
telefone (11) 3845 8638
Monza
Alameda Carinás, 73, Moema, São Paulo;
telefone (11) 5535 2538
Indy 500
Rua Curitiba 290, Modelódromo, Ibirapuera, São Paulo;
telefone (11) 3052-3763 e (11) 99975 2255
Talladega
Rua Américo Brasiliense, 812, São Bernardo do Campo, São Paulo;
telefone (11) 4125-7061