Em seu blog O Tranca Rua [que a partir da semana que vem estará hospedado no portal de blogs da Trip], o fotógrafo João Wainer conta como foi seu encontro com Raul Reyes, o comandante das FARC morto essa semana no Equador
Dia desses, ao abrir o jornal me deparei com a noticia da morte do Comandante Raul Reyes, segundo homem na hierarquia das FARC, em um bombardeio aéreo na selva equatoriana. Conheci Reyes em 2003, numa viagem para o sul da Colômbia a convite das FARC ao lado do repórter Fabiano Maisonnave, que eu não conhecia até então, mas que viria a se tornar um grande parceiro de roubadas pela América Latina. Pegamos o avião em Cumbica sem saber muito o que nos aguardava. O destino era Quito no Equador (minha cidade favorita na AL) e as instruções passadas por membros da guerrilha que viviam clandestinos no Brasil eram simples e claras: Desembarquem, sigam para o hotel Libertad na calle 7 de Septiembre que alguém da guerrilha vai procura-los.
O contato logo foi feito. Uma mulher com cerca de 40 anos e o sugestivo nome de Esperança veio ao nosso encontro e passou novas instruções. Ela nos entregou duas passagens de ônibus para uma cidade na fronteira do Equador com a Colômbia. Disse que durante a viagem seriamos seguidos de perto mas só saberíamos quem nos acompanhava no momento oportuno. No dia seguinte lá estávamos nós, sentados em um ônibus caindo aos pedaços e lotado de gente, bicho e sacolas de todos os tipos. Haviam pessoas em pé no corredor e logo uma índia velha sentou-se no braço da minha poltrona e jogou parte do seu peso (que não era pouco) sobre meu ombro direito. Ofereci o lugar a ela, que recusou. A viagem durou cerca de 22 horas. Numa das paradas, um homem com a barba por fazer, bigode preto e uma peruca loira, muito parecido fisicamente com o palhaço Tiririca entrou no ônibus e sacou da bolsa um pote de maionese com uma Tênia Solitarium no formol. Dizia que cada um dentro daquele ônibus poderia ter uma dessas em seu estômago e que a única solução para ficar livre daquele mal seria tomar uma das pílulas milagrosas que ele vendia. Além de te livrar da tênia, segundo ele, a pílula curava câncer e Aids. O incrível foi que ele vendeu várias. Até eu comprei uma.
A região da fronteira entre o Equador e a Colômbia é tensa. O sul da Colômbia é dominado pelas FARC e há um acordo velado entre guerrilheiros e governo equatoriano. A principal porta de entrada de pessoas, alimentos e armas para a Colômbia era o norte do Equador. As FARC não atravessam para o lado Equatoriano e o governo fazia vista grossa para o transito da guerrilha. Nesse corredor estávamos nós e a cada blitz do exército Equatoriano, fazíamos de conta que éramos turistas indo para um lugar onde não havia turismo e os militares faziam de conta que acreditavam. Grupos paramilitares de direita andavam barbarizando naquela área. Dias antes haviam parado um ônibus e matado todos os maiores de 14 anos. Os jornais colombianos puseram a chacina na conta das FARC. Cinco blitze depois, chegamos ao ponto final de nossa viagem na beira do Rio Putumayo, que dividia os dois países. Descemos do ônibus e uma menina de 16 anos que se apresentou como Sophia nos abordou. Para nossa surpresa, a única pessoa de quem não desconfiávamos era o nosso contato. Saímos dali com ela e caminhamos pela cidade até um ponto em que uma lancha nos aguardava.
Entramos clandestinos na Colômbia atravessando o Putumayo e na outra margem do rio dois guerrilheiros já nos aguardavam. Vestiam calça camuflada, botas e camiseta branca. Não carregavam fuzis, apenas uma pistola cada. Subiram no barco e andamos por cerca de duas horas até uma cidade chamada Pinuña Negra onde paramos para almoçar. Ganhamos botas de borracha e uma capa de chuva. Fui até um bar e pedi uma coca para surpresa da atendente. Depois fui descobrir que aquela cidade era uma das principais portas de saída da cocaína produzida no sul colombiano e corrigi a gafe dizendo que queria uma coca-cola. Nas vielas de terra da cidadezinha, sempre o mesmo tipo de música ecoava. Eram os narco-corridos, tipo de funk proibidão local, em ritmo de cumbia, que exaltava os grandes generais da droga locais.
Seguimos viagem em um outro barco, bem menor, uma voadeira com um motor de 15hp. Entramos num igarapé muito raso e o barco atolava em raízes e bancos de terra. A cada atolada descíamos e carregávamos o barco nas costas. No final do dia paramos para dormir na casa de um cocaleiro, no meio da selva. Podre como eu estava, dormi um sono profundo, mesmo estando ao lado de dois guerrilheiros armados. Nem o ronco do dono da casa foi capaz de atrapalhar meu sono. No dia seguinte pela manhã continuamos e algumas horas depois algo alem de macacos se moveu na mata. Eram cerca de 5 guerrilheiros, vestindo roupas camufladas fuzis AK-47 e pistolas. Nos receberam muito bem e se disseram preocupados com nosso atraso. Caminhamos pela mata até o acampamento e um belo almoço nos esperava. Sentamos em uma mesa feita com troncos de árvore e nos foi servida uma carne de porco do mato, caçado por eles. Comemos e bebemos ao lado do grupo dos guerrilheiros. No final do almoço, surgiu na nossa frente a figura do comandante Raul Reyes acompanhado de mais dez guerrilheiros. Baixinho, gorducho e de barba e cabelos brancos parecia um Papai Noel fardado. Trazia seu AK-47 a tiracolo e duas pistolas na cintura. Extremamente simpático e sorridente, posou para fotos e conversou bastante conosco. Contou histórias da vida na selva, falou de política e da luta pela liberdade. Desconversava sempre quando o assunto eram drogas.
As FARC (Forças Armadas Revolucionárias Colombianas) surgiram na década de 60 como um movimento popular de esquerda liderado por Manuel “Tirofijo” Marlunda, que lutava contra os desmandos de uma elite que se perpetuava no poder e relegava aos camponeses uma condição de vida sub-humana. Com a queda do muro de Berlim e o fim da URSS, a guerrilha perdeu seu financiador e se aliou aos traficantes e produtores de cocaína para poder manter sua luta política, perdendo sua legitimidade e ganhando a antipatia total dos EUA, principais consumidores da droga produzida por ali. Enquanto o Fabiano entrevistava o comandante, sentei com um grupo de guerrilheiros. Eles pediram pra ver minha câmera e em troca pedi para manusear o fuzil. Expliquei o funcionamento da câmera e eles do fuzil. Disseram que os fuzis russos AK-47 eram muito melhores que os AR-15 americanos. Perguntei porque e me contaram uma história que explicava a diferença entre americanos e russos. Disseram que os americanos gastaram milhões para inventar uma caneta esferográfica que pudesse ser usada no espaço, enquanto os russos não gastaram nada e levaram um lápis. O AK-47 é mais simples, disse um deles sobre o fuzil que segundo a lenda atira até embaixo d’agua. Pedi para ficar mais alguns dias mas o comandante não autorizou. Insisti e fui até um pouco chato, mas sem perder a elegância Reyes deixou claro que não seria possível. Não se deve abusar de alguém com um fuzil pendurado no pescoço.
No final do dia nos despedimos do grupo. Voltamos ao barco e fizemos o caminho de volta. Paramos na mesma casa para dormir e seguir viagem no outro dia. Desta vez menos cansados, conversamos bastante com os guerrilheiros, que estavam bem mais a vontade. Eles cantaram as musicas da guerrilha, falaram da rotina na floresta e o porque de estarem ali. Mostrei um CD dos Racionais que trazia no meu discman. Eles gostaram da musica e dei a eles de presente. Na manhã seguinte assim que o sol apareceu seguimos viagem. Na hora da partida, um dos filhos do dono da casa em que dormimos colocou o CD dos Racionais para tocar. O barco foi saindo enquanto a musica Vida Loka II quebrava o silencio da selva amazônica colombiana
