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Ecologia íntima

Nós temos uma selva dentro de nós. E não, esta não é uma metáfora ecopsicológica de gosto duvidoso. Estou sendo quase literal. Cada ser humano tem realmente dentro de si uma mata biológica de diversidade e proporções florestais. Chama-se flora intestinal. É uma imensidão microscópica. É uma Amazônia na barriga. E talvez eu esteja sendo até modesto na comparação, porque enquanto a floresta equatorial brasileira tem por volta de 100 espécies vivas por hectare, a área do intestino, muito menor que 1 hectare, tem pelo menos 400 espécies conhecidas. No instante em que somos dados à luz, o sistema digestivo está vazio de vida. Assim que recebemos o primeiro leite materno, recebemos também as primeiras bactérias que vão colonizar o oco sinuoso do intestino e criar um ecossistema. Como as selvas do exterior, nossa flora vai prestar serviços vitais para o planeta que somos, cada um. Da absorção saudável de nutrientes à regulagem do sistema imune. Aquilo que nos forma e nos mantém.

Um homem é composto por uma média de 10 trilhões de células. A flora e a fauna que esse mesmo homem carrega nas vísceras têm 100 vezes mais células. Como a própria Amazônia, os seres vivos que habitam as nossas profundezas compõem uma ecologia complexa, frágil e interdependente. Tudo muito fácil de destruir e muito difícil de reconstruir com propriedade. Assim, não bastasse a época aquecida, em todos os sentidos, que vivemos, há ainda mais este pouco falado perigo ambiental. O desmatamento interno. Como a Amazônia, um intestino mal alimentado também corre o risco, se não de se extinguir, de virar um campo de pragas. É com a própria comida que renovamos sua diversidade. A alimentação é o principal agente do reflorestamento humano. E do reflorescimento. Com ela reciclamos as tais 10 trilhões de células que nos compõem. A cada sete anos, nosso organismo troca todas essas células do corpo e nós ressurgimos novos em folha, como se houvéssemos passado por alguma versão biológica da reencarnação.

Como diz aquele provérbio antigo, somos o que comemos. Um problema, não é novidade, é que estamos comendo muito. Um homem contemporâneo come até 60 toneladas ao longo da vida. O outro problema, mais sério, é que estamos comendo mal. A quantidade inédita de metais pesados, hormônios sintéticos, conservantes artificiais ou soluções antibióticas anda fazendo um papel de fazendeiro do Pará dentro de nós. Ateando fogo em um tesouro biológico. Atentando à nossa ecologia íntima. As secas, inundações, furacões, se traduzem aqui em descontrole de gases, do colesterol, da obesidade… Em duas palavras, mal-estar. Parece risível. Mas eu não riria. É epidêmica a incidência de doenças ligadas ao intestino. Das enfermidades mais óbvias, como as alergias de toda a sorte, inclusive supostamente “respiratórias”, às doenças menos óbvias, e mais graves, como um leque amplo de distúrbios mentais.

O começo é a metade de tudo

Sim, somos o que comemos. E o intestino é o cérebro que transforma a comida em nós. Mais uma vez, estou sendo quase literal. Para tradições médicas milenares, como a védica ou a chinesa, o intestino é um órgão através do qual nós discernimos, sentimos, pensamos. Não só sobre a comida, mas, como qualquer mãe-de-santo sabe, sobre a vida toda. A ciência anda esquecida disso, mesmo sabendo que de acordo com a própria ciência há mais neurotransmissores no intestino do que no cérebro. E que há também ali uma imensidão de neurônios usados, sobretudo, nas decisões fundamentais que o sistema imune tem que tomar a cada segundo, para aceitar o que nos fará bem e rejeitar o que nos fará mal. Nesta época de excessos impensados, que geram a destruição inconseqüente que estamos testemunhando, atônitos com nós mesmos, talvez devêssemos ouvir mais o intestino. Para isso, precisamos tratá-lo melhor. Não é nada que não possa começar com uma dose diária de probióticos e uma disciplina alimentar mais inteligente, que não ceda bobamente às ansiedades do cotidiano. “O começo é a metade de tudo”, disse Platão, 400 anos a.C. E já em 1976, um amigo meu adolescente, que atendia pelo bonito apelido de Gasoso, amante do Che Guevara e do rodízio de pizzas Grupo Sergio, ouviu um conselho definitivo da mãe, dona Sarita: “Se você quer mudar o mundo, por que não começa arrumando a bagunça do seu quarto?”. O local é o global. Sábia dona Sarita. O raciocínio dela deve ser levado a conseqüências ainda mais pessoais. É através dele que entendemos que o aquecimento global começa na barriga. Algo que o Gasoso sabia melhor que Platão.

*Carlos Nader, 41, segue uma dieta inteligentemente equilibrada. Seu e-mail: carlos_nader@hotmail.com

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