Duro, só o regime
Em nome da moral e contra o comunismo, a ditadura tapou bundas e peitos das revistas
Em nome da moral e contra o comunismo, a ditadura tapou bundas e peitos das revistas. Agora um livro resgata essa história secreta e revela como as editoras driblaram a censura para mostrar o que o povo queria ver.
“Digamos que, se eu fosse acusado de abuso sexual ou entrasse em um shopping atirando em todo mundo, minha casa seria a prova de que eu sou culpado”, brinca Gonçalo Junior, referindo-se às mais de 10 mil revistas de “mulher pelada” que cobrem, do chão ao teto, as paredes de seu apartamento. De visual asseado e fala polida, ninguém diria que o jornalista baiano, colaborador da Trip Editora, é o dono de todo esse santuário da sacanagem.
Mas não pense besteira. É tudo parte da pesquisa que resultou no livro Maria Erótica e o clamor do sexo, segundo volume da série “A guerra dos gibis” (ed. Peixe Grande), que Gonçalo lança neste mês de agosto. Iniciada há 20 anos como trabalho de conclusão de curso do então aluno de jornalismo, a obra conta como a ditadura militar brasileira foi, literalmente, uma estraga prazeres. Durante as duas décadas em que esteve no poder, a mão de ferro do regime serviu para esconder peitos e bundas das páginas de revistas, tirar capas picantes das bancas, esmagar pequenas editoras e impedir que outras grandes prosperassem.
Até o fim da Segunda Guerra Mundial, revistas adultas no Brasil eram artefato raro. Circulavam restritamente, com autores escondidos atrás de pseudônimos. Todas seguiam um modelo inventado na Argentina, apelidado de “revistas de barbeiro”, que trazia piadas preconceituosas e fotos de mulheres estrangeiras um pouco mais saidinhas, ao estilo dos calendários de pinups norte-americanas. Não havia repressão oficial. Era a moral católica dominante no país que encarregava-se de coibir as moças de mostrarem suas vergonhas.
Pouco a pouco, porém, as brechas para a libertinagem começaram a surgir, cavadas pela revolução sexual que explodia a partir da década de 60. Marilyn Monroe, pílula anticoncepcional, contracultura, o humor escrachado da revista Mad... O mundo e o Brasil começavam a abrir a cabeça. Mas a alegria duraria pouco. O presidente João Goulart é deposto, ascende o governo militar, e todas essas coisas são jogadas num mesmo pacote – um pacote chamado comunismo. Gonçalo nos explica melhor: “A ditadura dizia que a indústria do sexo – seja ela na forma de revista, filme, livro ou quadrinhos – era uma manipulação para minar a estrutura da família cristã. A pornografia fragilizava as mentes e isso era propício para o avanço da ameaça vermelha. O engraçado é que os comunistas tinham o mesmo discurso, porém acusando o capitalismo”. Antes de ser imoral, portanto, sexo era um problema político.
“A ditadura dizia que era uma manipulação para minar a família cristã. A pornografia fragilizaria mentes e isso era propício para o avanço da ameaça vermelha”
Uma das maiores dores de cabeça da censura militar foi a editora Edrél, fundada pelo nipo-brasileiro Minami Keizi no interior de São Paulo, em 1960. Considerado o pai do mangá no Brasil, ele começou a carreira editando a Garotas e piadas e mais tarde lançou a Cinema em close up, um tipo de bíblia da pornochanchada. Minami foi o porta-voz das pornochanchadas, usando a revista para promover garotas que queriam virar estrelas. David Cardoso, dotado ator do período, conhecido como “Homem Linguiça”, conta no livro: “Na Boca do Lixo (região que concentrava produtoras de filmes eróticos em São Paulo), atrizes viravam putas e putas viravam atrizes”.
Decreto Leila Diniz
As duas revistas foram um estouro de vendas, com média de 98% da tiragem vendida. Além delas, Minami publicou outros 200 títulos eróticos e, não fosse o decreto 1.077, teria publicado ainda mais. Apelidado de “decreto Leila Diniz” (em entrevista ao Pasquim na época, a atriz revoltou os militares ao pregar o amor livre e declarar já ter feito o tal “teste do sofá”), o despacho mandou para os fornos da ditadura, nos quatro anos em que esteve vigente, mais de 500 publicações sobre sexo. Pelo menos um quinto desse número pertencia à Edrél. Como prova, o senhor Keizi, falecido em dezembro de 2009, deixou de herança mais de 300 correspondências que a censura lhe enviou durante os anos de chumbo.
Bundas não podiam aparecer de frente, só de perfil; mostrar os dois seios era proibido (apenas um, e encoberto, era permitido); a vagina jamais poderia estar explícita
A grande imprensa também sofreu. A Playboy foi proibida de circular com o nome original, tendo de se chamar Homem, a revista do Playboy. Seus ensaios tinham que obedecer a uma espécie de “manual da sacanagem”: bundas não podiam aparecer de frente, só de perfil; mostrar os dois seios era proibido (apenas um, e encoberto, era permitido); a vagina jamais poderia estar explícita. Por conta disso, muitas vezes biquínis e lingeries tinham de ser desenhados improvisadamente por cima das fotos. E, em tempos pré-Photoshop, técnicas gráficas tiveram de ser inventadas para esfumaçar bicos de seios salientes e/ou sexos por demais nítidos.
Os jornaleiros tornavam-se cúmplices das revistas que vendiam, criando estratégias para que elas chegassem às mãos dos clientes. Colocavam um ou dois exemplares no mostruário, a polícia vinha, retirava tudo e, mal dobrava a esquina, outros eram postos no lugar. Isso sem contar com o mercado negro, com diversas distribuidoras clandestinas vendendo material proibido.
Playboy dos pobres
Em 1975, a Edrél encerrou as atividades. Um ano depois, a Grafipar abre em Curitiba, e a pornografia, mesmo que não tão pornográfica ainda, segue a salvo no Brasil. O proprietário é o descendente de árabes Faruk El-Khatib. Peteca, chamada de a “Playboy dos pobres”, é a principal revista da nova editora, chegando a vender 4 milhões de exemplares por mês. Depois veio a Penthouse, que Faruk descobriu numa viagem a Nova York.
Finalmente, com o tenente-coronel Ernesto Geisel vestindo a faixa de presidente, cai a censura prévia às redações, assim como o pudor na mídia. Surgem os chamados “retratos ginecológicos”, quase sempre protagonizados por suecas e dinamarquesas. Sessões de filmes pornô, como os antes proibidos Calígula e Garganta profunda, arrastam cerca de 10 milhões de espectadores, formando filas de até 6 km. E uma enxurrada de novas revistas masculinas hardcore invadem as prateleiras país afora. Era hora de recuperar o tempo perdido. Após quase 20 anos de um forçado celibato editorial, leitores e imprensa brasileiros puderam, enfim, gozar de liberdade.
Páginas coladas
A maior parte do acervo erótico de Gonçalo veio de Loris Foggiato, desenhista curitibano falecido em 2009, aos 96 anos. Em abril último, nosso autor comprou quase 10 mil revistas do senhor – apenas um décimo da coleção de Loris. Tudo custou a bagatela de R$ 2 mil (no Mercado Livre, é possível achar apenas um desses exemplares por até R$ 500). Agora, por falta de espaço, Gonçalo quer transformar o material em um museu da imprensa erótica no Brasil. Esse já é o 16º livro publicado pelo jornalista. Todos eles são ligados de alguma forma ao tema da censura. Por que isso? “Quando eu era pequeno na Bahia, existia um terror chamado Antonio Carlos Magalhães. Meu pai era funcionário público e vivia com medo de ser despedido ou despachado para algum lugar, como acontecera com diversos conhecidos. Havia diversas Sibérias na Bahia. Não podíamos acompanhar manifestações nem falar de política. Vivíamos sob o pavor da delação.” Antes de ser publicado, Gonçalo foi alvo de um preconceito parecido ao que aborda em Maria Erótica e o clamor do sexo. Enviava originais para Deus e o mundo, que voltavam sem sequer serem lidos. A triste certeza vinha de uma técnica que ele mesmo inventara: colava suavemente algumas páginas para que quem fosse ler tivesse de desfazer a manobra. Durante 27 anos, os originais sempre retornavam às suas mãos com as páginas coladas. “Se eu não estava sendo avaliado, não havia por que desistir.”