Ando preocupado com coisas que venho observando depois que mudei de bairro e comecei a fazer um contato mais de perto com pessoas da classe média baixa e média. Na verdade, parece que vivemos em um universo de pessoas abandonadas à sua sorte, à suas individualidades, onde é preciso ser duro como pedra e que só podemos contar com nossa capacidade e atenção para sobreviver. A convivência não é na rua em que se mora. Não conhecemos os vizinhos ao lado, parede e meia de nossa casa. No máximo sai um "bom dia" ao coincidir de se tirar os carros das casas ao mesmo tempo. Casas com muros altos e ouriços farpados em todas suas extremidades. Uma preocupação imensa com segurança; para abrir a garagem é preciso olhar bem a rua e ficar super atento enquanto o portão esta aberto. A convivência é nos Shoppings do bairro ou da Zona a que estamos circunscritos. Mas as pessoas, nesses lugares passam umas pelas outras e nem se olham; estão de olho super atentos nas vitrines das lojas. As praças de refeições são de mesas isoladas em que as pessoas ficam o mais longe possível umas das outras. E todos vestido com o que dita a moda. É possível se ver o mesmo tênis que esta na vitrine, por exemplo, nos pés das pessoas.
Outro dia pensei que isso tudo não me é estranho. Havia uma sensação de dejavu e não sabia precisar de onde, até que percebi: vivi isso na prisão. A convivência no mundo das pessoas com um pouco mais de poder aquisitivo esta parecendo com o que vivi na prisão. Parece que a tentativa é de sobrepujar e ultrapassar as pessoas como fossem elas nossos adversários, aqueles que impedem, como em um jogo, de fazermos nossas jogadas. Os outros suscitam medo, depois cautela e a seguir empenho em sobrepujar. Juntos só podemos ficar se os outros nos apoiarem ou for lucrativa a participação. Parecemos produtos de mercado, cedemos à pressão do consumismo e nos tornamos mercadoria: vendidos ou comprados.
Onde eu morava, periferia de Embu das Artes, que é cidade da periferia de São Paulo (então periferia da periferia) era bem diferente. As pessoas se conhecem, todos se cumprimentam. Nos dias de calor, as mulheres colocam cadeiras na porta de casa e conversam; as crianças brincam nas ruas; e não há como passar por esse povo sem sorrir e dizer alguma coisa agradável aos que se conhecem. Caso se aperte a mão cumprimentando um deles, é preciso apertar a mão de todos ali presentes. Eu passava fazendo sinais de cumprimentos a todos com as duas mãos e sorrindo para todos. Não queria ter que parar, porque sempre era preciso dizer como se esta e escutar como cada um deles estão e eu tenho pouco tempo. Era até chato e cansativo. Seria um desrespeito passar sem um sorriso, uma brincadeira, um cumprimento.
Por aqui é diferente, parece que se materializa sentimentos em coisas: ama-se o carro, passamos horas lavando e limpando. Gastamos muito em assessórios sofisticados: GPS, computador de bordo, celular com aplicativos que só faltam dirigir o carro sozinhos e o motorista torna-se apenas um apêndice do carro. Ou então utensílios caseiros de ultima geração. Não é mais nem uma campainha que nos chama ao portão de casa: é um aparelho que pergunta sobre o que a pessoa procura ao acessar nossa casa. Não há mais contato nem visual. Parece que todos querem escapar de alguma coisa, talvez da vida, mas principalmente da vida com os outros. Não estou me acostumando e isso me aborrece. Quando volto ao bairro antigo, é quase um alívio. Meto um chinelo de dedos no pé, uma bermuda e posso até andar sem camisa até o "boteco", tomar uma cerveja geladíssima. Todos me conhecem, se agradam com minha companhia e perguntam: "você sumiu, o que houve? Esteve doente?" Tenho que explicar que mudei de bairro e eles perguntam: "Lá é melhor que aqui?" Eles pensam que é, não valorizam a convivência direta que possuem.
A relação com os outros nesse bairro mais sofisticado, com casas maiores e mais bonitas, com gente melhor vestidas e de melhor postura, parece um processo de elaboração intelectual abstrata, seco, lembra como era na prisão, como disse acima: duro como pedra...
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