Diário de um personal

O personal trainer Carlos Cintra fala de seu blog, um relato diário de como voltar à forma

por Daniel Benevides em

"Olá, meu nome é Carlos Cintra. Sou personal trainer especializado em fisiologia do exercício e professor universitário. Tenho 38 anos e três meses de idade. Após cinco anos de namoro, casamento e muito trabalho, tentarei retomar meu projeto de reconstrução do corpo. Não que esteja faltando alguma parte, membro ou coisa parecida, mas, cinco anos de puro sedentarismo deixaram meu corpo mais lerdo, mais gordo, mais feio, com menos disposição para fazer coisas simples como levantar e caminhar, passear com o cachorro e até cuidar mais da apresentação pessoal, a parte estética mesmo.  Hoje peso 93 kg; há 7 anos pesava 78 kg."

Assim começa o primeiro post do novo blog do site, o Personal Intransferível. O blog é, na verdade, um diário, em que Cintra, conhecido de algumas edições da Trip (que podem ser acessadas no clipping de seu site), relata cada passo da sua programação para voltar à forma, com auxílio de fotos, números, dicas pessoais, explicações científicas (sempre claras) e tabelas. E principalmente bom senso.

Aliás, essa é uma qualidade que salta aos olhos quando se conhece o professor Cintra. Apesar do aspecto jovial, da simplicidade de maneiras e simpatia, ele é absolutamente sério e sensato quando se trata da saúde física. E muito eficiente, sem frescuras ou enrolação: "Se eu encontro um elefante na frente, dou um tiro de 12 pra resolver logo a parada."

Nos encontramos num restaurante de comida saudável, com buffet de saladas e grelhados, perto da Trip. Ansioso para aprender alguma coisa, este repórter com mais de 40, ex-atleta e hoje também relaxado, imitou cada escolha do entrevistado, compondo um prato idêntico ao dele, com variedade de cores e quantidade nem risível, nem exagerada.

Entre uma garfada e outra, uma conversa que valeu por muitas aulas. A impressão é de que nunca mais veria o prato à minha frente com os mesmos olhos. A começar do tempero na salada:

"Se você pegar o vinagre, o limão, e der uma temperadinha, sem problema. Não vai ter peso ou ônus nenhum para você. Agora, se você pegar aquele tempero com óleo ali, cada 10ml dele vai equivaler ao prato inteiro que a gente tá comendo."

Engulo a seco, imaginando a quantidade de óleo que já desceu pelo castigado esôfago. Pergunto sobre os mitos envolvendo a alimentação e a saúde corporal, aquelas doses de sabedoria popular que todo mundo toma sem ler a bula:

"O pessoal fala, ah, vou tirar todo o 'carbo' da dieta. Tirar o carboidrato da dieta é a maior cagada que você vai fazer, vai perder muita massa muscular."

"Outra idéia errada: o pessoal acha que tem que beber dois litros de água todo dia, não precisa. Quando você comer a salada, o milho, o ovo, tudo vai vir com um pouco de água. O pão tem água. Feijão é cozido na água, o arroz é cozido na água, a carne que a gente vai comer vem com sangue que tem água. Tudo é água. Você é 60% de água."

“Existem várias ideias erradas. Por exemplo: que a natação é o esporte mais completo. Que pilates é excelente para a coluna. Que corrida é só para atleta. O pessoal cria alguns conceitos em função do que eles ouvem na mídia, de distorções pessoais, da falta de conhecimento em relação ao próprio corpo."

“A alimentação é importante, não tenha dúvida. O valor biológico do alimento influencia "pra cacilda". Eu costumo sempre falar e você vai ver no blog: você tem uma Ferrari em termos de corpo, você acha que é coerente abastecer a sua Ferrari num posto que a marca não é boa, que a gasolina é duvidosa. Você vai colocar uma gasolina batizada dentro da sua Ferrari? E depois você acha que vai conseguir correr 400km com o potencial que o seu carro poderia dar? Difícil."

“Existem várias ideias erradas. (...) O pessoal cria alguns conceitos em função do que eles ouvem na mídia, de distorções pessoais, da falta de conhecimento em relação ao próprio corpo.”

A essa altura o repórter sente que seu corpo é um fusca enferrujado. Mas nada de desanimar. O projeto do blog de Cintra é justamente mostrar que é possível melhorar a forma com força de vontade e alguns ensinamentos valiosos. Segue a conversa:
 
Você gosta de comer?
Pra caralho. Eu sou muito chegado em sabores diferentes, sabores temperados. Sou filho de italiano com alemão: meu pai é descendente de italiano, minha mãe é alemã. Os alemães têm o hábito de comer muita carne de porco, muita salsicha, muita lingüiça. Pela minha mãe, não existia carne vermelha. Eu aprendi com o meu pai que tudo que termina com "ela" é bom: alichela, sardela, berinjela.

Você teve que rever essa educação?
Pra "cacilda". Tem criança que não sabe o que é um chuchu. O hábito passa dos pais pros filhos. Eu ainda tive sorte de ter uma mãe que tinha o discernimento.

Tem algum momento em que você diz: "preciso comer uma gordura, uma fritura, alguma coisa 'probida'"?
De vez em quando escapo, vou no japonês... como arroz pra caramba lá. Nos últimos posts, conto de quando fui dar aula em Curitiba, e que, na hora de comer, fiz uma sobrecarga de talharine, um pratão!

Você entrou na faculdade de educação física aos 26...
Eu estudava Direito antes. Trabalhei num banco desde 15 anos, fui office-boy, escriturário, chefe de seção, tive cargo de supervisor,  fui analista financeiro. Meu pai e minha mãe se separaram e eu tive que ralar. Não tive mais cara-de-pau de pedir dinheiro para a minha mãe. Antes de entrar no banco fiz de tudo na minha vida, fui pacoteiro de supermercado, catei bolinha em clube de tênis... Com 11, 12 anos de idade você tem que fazer isso. Trabalhar na feira, vender ovo, batata, era o trabalho que dava um dinheirinho.

Quais seriam três ensinamentos básicos para se ter uma boa consciência corporal?
A maioria das pessoas tende a fazer o que gosta. Quando a gente pensa em saúde, ela deveria fazer o que ela precisa, não o que ela gosta. Eu recebo todos os dias pessoas que adoravam fazer exercício físico e que se machucaram porque só faziam o que adoravam. O exemplo mais comum são corredores que só corriam. Em um determinado momento o músculo não dá mais estabilidade e começa a dar problema: dor no joelho, dor no quadril, no tornozelo, sempre no membro inferior. É um exemplo típico do cara que só fazia o que adorava, o que gostava, e teve algum problema.

Segunda coisa: a pessoa não deveria em hipótese alguma se achar muito mais do que ela é em termos de corpo. A grande maioria das pessoas que eu conheço acha que pode ficar 20, 30 anos da vida dela sem fazer nada e que quando ela quiser retomará aquela condição física de há dez, vinte ou trinta anos. Isso é arrogância em relação ao próprio corpo. Posso garantir para você que ela não vai retomar aquela condição que tinha. Não sei se daqui a seis meses eu vou conseguir retomar todos esses cinco anos de sedentarismo. Sei que vou melhorar.

Um terceiro ponto que eu acho muito importante é a pessoa ter um tutor, que é um cara que está de fora, olhando quem você é, que te conduz a uma coisa boa, puxa sua orelha para você fazer o que não gosta e deveria fazer. Você não segue à risca tudo o que ele faz, mas é um cara em quem você confia, acredita e dá uma chance para ele mostrar para você que isso funciona bem.

Como você vê o surf e o skate enquanto esportes?
Fui skatista, peguei onda, morei em Mongaguá. Dos 13 aos 15 anos, antes de trabalhar no banco, morei na casa do meu pai lá na praia. A vida era trabalhar durante o dia, surfar de tarde e ir para a escola à noite para contar as ondas que tinha pegado, se o mar estava bom, ruim. O surf é um esporte completo, excelente, mas é necessário ter compensações. O surfista de fim de semana deve se preocupar com sua saúde corporal. Se ele sai da água e faz uma sequência de exercícios abdominais, isométricos, na areia mesmo, e se faz alongamento nessa região que ficou superestendida durante o surf, já está colaborando para não ter nenhum probleminha depois. Não precisa fazer uma sessão exagerada, faz uma hora de sessão antes, depois faz a compensação, descansa um pouquinho, aí parte para uma segunda sessão, faz tudo de novo. Se ele fizer assim, tem longa vida no surf. No skate, a mesma coisa. Só que, quando se cai, a coisa é diferente. Tem capotes, os ralos, os traumas. Para ter um trauma na água, você precisa ter feito uma arte, a prancha ter pegado no joelho, ter tomado uma vaca, ter caído na pedra. No skate, a preparação também ter que ser específica. Regiões como o tornozelo, joelho, quadril, têm que ser fortalecidas, sem fazer com que esse cara perca a mobilidade. Se você conseguir fazer um trabalho legal no sujeito, ele vai conseguir se estruturar bem para a atividade.

Recapitulando: hoje você  tem uma agência de personal trainers...
Tenho um estúdio de personal nos Jardins. São cinco professores que trabalham junto comigo, é a equipe que eu montei. Tem a turma que trabalha nas empresas na parte de ginástica laboral, ergonomia e fitness corporativo, que é montagem de academia dentro das empresas. E eu dou aula na Universidade Gama Filho, para profissionais da área da saúde: médicos, biomédicos, fisioterapeutas, nutricionistas que estão querendo se especializar em fisiologia do exercício, nutrição esportiva, obesidade de emagrecimento.

***
Os pratos estavam vazios há um tempão, mas eu ainda estava cheio de perguntas na cabeça. Sem querer tomar mais tempo do entrevistado, perguntei:

Você come sobremesa?
Desde que comecei a dieta, não. Mas quando eu como esse prato que você viu e ainda estou com fome, eu peço uma fruta pra daqui a uma hora. Pela quantidade de carboidrato que você comeu, vai estar com fome de novo daqui a duas horas. Você não pode deixar de comer. É uma fogueira que acendeu agora e daqui a algum tempo, quando você fizer a digestão, vai abaixar a labareda. Para manter o seu metabolismo aceso, você precisa novamente colocar um pouco de lenha na fogueira. Se você não colocar, o metabolismo vai baixar e a idéia é manter a chama alta.

Por que a chama tem que estar sempre alta?
Porque assim seu metabolismo vai estar sempre mais ativo, com uma série de processos fisiológicos prontos para acontecer. Um dos efeitos do sedentarismo é fazer com que você não consiga fazer uma série de processos bioquímicos. As pessoas morrem de medo de fazer um exercício e ter um treco porque fizeram muito intenso. Isso é uma bobagem, engano, uma mentira. Mesmo que você queira fazer um exercício intenso, seu corpo não vai deixar. Seu corpo vai produzir uma substancia, o ácido lático, que vai fazer com que você pare por fadiga antes de você ter o treco. Todo mundo produz isso, mas quem está ativo consegue ter uma enzima que converte essa substância em glicose, que é importante para continuar fazendo exercício. Um atleta é muito mais “enzimado” do que um cara que não é atleta. Esse é um dos mecanismos defensores. Você também não vai conseguir ativar um número de fibras musculares na intensidade necessária e com o padrão de recrutamento necessário para produzir mais movimento. Quem é sedentário não tem essa ativação neural constante.

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Nos despedimos. Duas horas depois, comi uma maçã.

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