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Deus longe da bandeira


Caro herói olímpico não identificado,


 


Vários bits já passaram, mas muita gente ainda deve se lembrar da festa que vocês da seleção de vôlei masculino fizeram em Atenas. Como todas essas comoções virtuais da era da mídia, a conquista da medalha de ouro deixou meio Brasil de olhos úmidos. Eu incluído. Obrigado. Toda vez que a antena da minha memória sintoniza as imagens daquela quadra, um objeto de cena se destaca incomodamente do cenário. É uma bandeira do Brasil, histérica, agitada à frente da câmera por um dos jogadores que eu não consegui identificar. Você. 


Não importa o seu nome. Não é nada pessoal. O problema é a flâmula que você carregava, que saltitou com os berros do Galvão na tela da Globo e está até agora espanando o interior do meu crânio. Não consigo parar de pensar nela. É como se um flanelinha metafísico estivesse esfregando a bandeira na minha tela mental. Desagra-dável… Porque não era uma bandeira co-mum. O teu pendão verde louro tinha duas inscrições. Além do lema positivista tradicional de ?Ordem e Progresso? ? que faz cada vez menos sentido na vida real ?, o lábaro que tu ostentavas estrelado exibia em letras ainda maiores um outro slogan imponente: ?Deus é Fiel?.


Uma bandeira assim materializa um pesadelo político já recorrente. Ela torna mais uma vez evidente que esta tendência mundial de transformar Deus em símbolo nacional vem ganhando força crescente também no Brasil. ?Ah, era só uma bandeirinha inocente?, dirá algum leitor menos paranóico do que eu. É verdade. Era só uma bandeirinha inocente. Mas nestes tempos voláteis não é bom descartar pequenos sinais metafóricos. Bandeirinhas, justamente. Principalmente se as bandeirinhas vierem acompanhadas de várias estatísticas demonstrando que, se há um crescimento gradual e sustentado no Brasil, não é o da economia nem o dos indicadores sociais. É o crescimento da influência da religião na política.


 


Catástrofe iminente


 Tenho recebido várias mensagens de leitores religiosos, sobretudo evangélicos. Recebo sempre. São na maioria muito bem educadas e intencionadas. Quase todos en-tendem minha posição. Admiro os homens e as mulheres entusiasmados por alguma fé, aqueles que dedicam suas existências ao que crêem ser a criação de um mundo melhor. Num tempo de valores confusos, a idéia de Deus inscrita em corações e mentes indivi-duais pode realmente trazer alguma paz de espírito. Mas a idéia de Deus escrita em es-tandartes é sempre um sinal de catástrofe iminente.


 Talvez por estar falando de religião, eu esteja também exagerando no tom apocalíptico. Combina, né? Agora, ainda que eu es-teja parecendo um pastor possuído, sei que tal catástrofe pode não vir a acontecer nunca. Sobretudo por aqui. Em vários mo-mentos da história nacional, os movimentos radicais foram dissolvidos por uma onda letárgica, de um bom senso corruptor, que emana das camadas mais profundas da alma brasileira, chã e sã. Essa onda sempre diluiu desejos fundamentalistas de qualquer matiz. Somos assim, avessos a valores absolutos. Para o bem e para o mal. No fundo, não acho que o fim da história vá ser diferente em relação aos grupos que aspiram cravar cruzes definitivas em Brasília. Mesmo assim, acredito que menosprezar o avanço cons-tante desses cruzados novos seja uma forma de fé cega na sabedoria popular.


 Não custa abrir os olhos. O Oriente Médio, outra terra mestiça, era há pouco tempo formado por sociedades bem menos religiosas que os Estados Unidos. A conversão radical se deu em menos de 30 anos, num deserto adubado pelo esterco da in-justiça social, por razões internas e externas. Injustiça social é algo que conhecemos bem. Claro que são condições um pouco diferen-tes das nossas, mas não exatamente alienígenas. Sobretudo agora que a idéia de guerra (e de uma guerra de mandato divino) está sendo globalizada pelo mesmo país que glo-balizou o liberalismo.


 Então, que Deus nos ajude a ganhar muitas medalhas. E que Deus nos ajude a não vermos mais o nome dele exibido em bandeiras nacionais. Antes que você faça isso de novo, sugiro que consulte dois livros. Um é a Constituição do Brasil. Outro é a própria Bíblia. E lá está escrito: ?a César o que é de César?.

 


*Carlos Nader, 40, é videoartista e quer manter a religião afastada do Estado. Seu e-mail é: carlos_nader@hotmail.com

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