Terra de cego
Um brasileiro do Espírito Santo pode estar escrevendo silenciosamente algumas das mais importantes e impressionantes páginas da história do surf e da superação humana
A onda gigantesca (e não fotografada) de Greg Noll em Makaha em 1969. O dia em que Titus Kinimaka quebrou o fêmur tentando entubar em Waimea (como visto nas páginas da Trip 12, de 1989). Laird Hamilton e as primeiras experiências de tow-in nas ondas gigantes de Peahi. As primeiras ondas surfadas na remada por Danilo Couto, Marcio Freire e Yuri Soledad no mesmo pico. A coleção de 11 títulos mundiais de Slater. Quem tentar propor uma hierarquia razoável entre os momentos que redefiniram a história do esporte e, bem mais que isso, a percepção que se tem dessa forma de expressão humana e artística terá diante de si um desafio muito complexo.
Como comparar, por exemplo, a coragem de um sujeito grandalhão munido de uma prancha enorme e pesada concebida com o know-how dos anos 60 ao se jogar no mar em condições de quase tsunami e botar pra baixo numa onda de 25 pés, com o aparato high-tech, os 155 cavalos de uma moto aquática, uma prancha feita com fibra de carbono dotada de alças de nylon para fixá-la aos pés e capaz de entrar em velocidade altíssima numa rampa líquida e viva de 40 pés?
O grau de subjetividade daria margem a conversas sem fim que entupiriam chats e entrariam noite adentro em mesas de bares de Haleiwa provavelmente sem que se chegasse perto de um consenso. Ok, qualquer comparação desse tipo é perigosa e inconclusiva. Feito o registro, vamos arriscar a seguinte tese. Muito provavelmente, um cidadão brasileiro nascido em 1992 está, de forma silenciosa, protagonizando o feito mais incrível, inusitado, absurdo, maravilhoso e indescritível da história do surf. Achou exagero? Vamos um pouco mais longe: talvez possamos classificar o que esse garoto franzino do Espírito Santo tem conseguido como um dos maiores acontecimentos da história humana de superação.
Derek Rabelo é cego. Nasceu cego. Zero de visão periférica, nem um mísero ponto percentual de visibilidade, nenhuma capacidade de ver vultos, sombras ou identificar cores. O garoto recebeu seu nome do pai, surfista, numa homenagem ao ex-campeão Derek Ho. Rabelo fala pouco, mas às vezes diz que recebeu uma missão: mostrar ao mundo que alguém em sua condição pode tudo, desde que realmente acredite. Incrédulos e críticos dirão que isso só funciona nas páginas de autoajuda e vira balela frente ao oceano em dias de swell grosso. Para eles, a resposta de Derek tem sido implacável.
Nosso amigo acaba de realizar uma façanha que a maioria dos surfistas do planeta, mesmo dotada de técnica apurada, equipamentos de ponta e experiência considerável (além do pequeno detalhe de serem donos de visão perfeita), prefere não encarar. Ele dropou ondas respeitáveis num dos picos mais temidos do mundo, a baía de Waimea (leia mais na pág. 60). É verdade que, para encarar a empreitada, ele contava com o auxílio luxuoso do bicampeão mundial de surf Tom Carroll, além do apoio de Gutemberg Goulart da Cunha, surfista de Niterói que atualmente é instrutor de surf no Canadá e da big rider brasileira Silvia Nabuco. Tom forma ao lado de Kelly Slater, Mick Fanning, Medina, Mineiro e Derek Ho uma lista de campeões mundiais que se curvaram diante do talento e da disposição de Derek Rabelo.
Em suas andanças pelo mundo, o nosso Derek passou alguns meses na Austrália. Entre outras razões, pela maneira civilizada como o país trata as pessoas com algum tipo de deficiência física. Lá, a aproximação com Carroll, figura respeitada em qualquer lugarejo onde haja pelo menos uma poça de água salgada e alguém que lidou ao longo de anos com a dependência de drogas, fez surgir uma ligação forte e natural entre os dois.
Quando passou para buscar Derek e levá-lo pra água em Waimea, Carroll evidentemente não estava pensando em mídia, patrocínios, fotógrafos ou cinegrafistas prontos para projetá-lo num canal do YouTube. Quem viu a cena dos dois chegando no beach park mais famoso do North Shore notou isso claramente. Ali estava um sujeito baixinho e cheio de sardas que mantinha um sorriso de quem está absolutamente confortável diante de um desafio casca-grossa, ao lado de um cara magrelo e moreno que gosta de abraçar a todos, com certa tensão no semblante, sim, mas sem a mais ínfima nesga de medo em seu rosto.
Se você já esteve em Waimea sabe que o line-up não é exatamente um parque de diversões. A tensão e a disputa dão o tom do jogo. Quando alguém da estatura de Carroll (moral e esportiva, já que em termos de carcaça estamos falando de cerca de 1,60 metro) chega no pico, as coisas mudam radi-calmente. Importante frisar que as ondas que quebram por ali só são consideradas Waimea de verdade quando passam de um certo tamanho e quebram além da ponta de pedras que ladeia o point. Segundo os critérios locais, isso significa ondas acima dos 10 a 12 pés havaianos. Além do próprio tamanho das ondas no outside, nesses dias a topografia submersa faz com que o shorebreak , a ondinha que quebra na areia e que os brasileiros pulam sete vezes nas noites de réveillon, chegue a atingir cerca de 2 metros batendo seco na areia. Só isso já demanda todo um conhecimento para que o candidato a surfar ali consiga remar em direção ao pico sem protagonizar um vexame histórico voltando de ré para a areia no melhor estilo Fred Flintstone nas ondas de Bedrock. Sem falar nas correntezas e em outras armadilhas naturais que precisam ser evitadas.
Depois do trabalho de varar o shore-break e de um bom tempo medindo a força e o volume de água de cada onda, a dupla Tom e Derek começa a remar numa onda. Em uma gravação feita pela câmera na prancha do campeão, é possível vê-lo “puxando o bico” na hora H. Para enorme surpresa do próprio TC, como ficou patente nas imagens, e todos que viam a cena, Derek continua remando e consegue ficar de pé, para cair em seguida no buraco formado pela parede já muito reta da onda.
Algum tempo depois, outra tentativa – e outra queda. As horas vão passando e parecia que o sonho de Derek teria que esperar. De repente uma onda de respeito levanta no outside. O fotógrafo cola o olho no view finder e confirma: “O Derek e o Tom tão remando”. A onda sobe na bancada de coral, dobra de tamanho, empareda. O baixinho sardento acelera sua remada e bota pilha gritando e incentivando Derek. Os dois e mais um terceiro surfista ganham velocidade na remada e, quase ao mesmo tempo, ficam de pé nas pranchas. Derek dropa com firmeza um pouco mais no shoulder da onda e direciona sua prancha na linha certa, levemente apontada pra direita, evitando a famosa bolha e colhendo toda a energia da parede de água.
O surfista brasileiro que nasceu cego surfa uma das ondas mais icônicas do mundo e sai da água com a mesma alegria com que entrou. Sem excessos, sem gritinhos de uhu, apenas com a satisfação de materializar algo que sabia que faria, cedo ou tarde.
Bruno Lemos, o fotógrafo carioca e espécie de embaixador daquilo que o Brasil tem de mais elegante e amoroso no North Shore – e autor das fotos desta matéria –, se tornou algo entre padrinho, mentor e irmão mais velho de Derek. Em 2014, ele dirigiu um documentário sobre o surfista chamado Beyond Sight, the Derek Rabelo Story. Bruno conta que, antes de se aventurar em Waimea, Derek já havia surfado ondas respeitáveis como Rocky Point e Pipeline, além de Nazaré, em Portugal, sempre com atitude e performance surpreendentes.
Impressionado pelos feitos e pela energia de Derek, Kelly Slater fez questão de cair na água com ele. Surfaram juntos por algum tempo; então Kelly tentou remar e pegar algumas ondas com os olhos vendados. Não só falhou como ficou ainda mais impressionado com o garoto ao seu lado. Saindo do mar, conta Bruno, o gênio do surf disse a Derek que ele deveria fazer três coisas: adotar uma prancha curta, mais grossa e maior, surfar com o (body boarder) Mike Stewart (“o Mike precisa botar ele dentro de um tubo em Pipeline”) e surfar algumas ondas na mesma prancha com outro surfista, para sentir melhor como funciona o balanço das trocas de borda – e eles conseguiram fazer isso, um tandem com Rob Machado em uma sessão de long. Hoje Derek surfa bastante abaixado, com uma das mãos na prancha e a outra tentando tocar a água – o que parece ser fundamental para que consiga ajustar-se à linha das ondas. A inteligência e a perspicácia do 11 vezes campeão mundial deixaram todos impressionados. E Derek está trabalhando nesse sentido.
O fotógrafo acrescenta que, apesar de Derek não ter muita paciência para verbalizar o que sente e vive, de vez em quando ele se abre. Como quando explicou que consegue diferenciar os sons do ambiente conforme uma onda se forma. Segundo ele, é possível saber se a onda é uma esquerda, uma direita, se está fechando. Bruno diz também que já viu Derek varar a arrebentação de Pipeline sabendo exatamente a hora de afundar a prancha e dar o joelinho, remando no timing exato sem que ninguém lhe dissesse nada. Pode ser uma das razões que explicam o fenômeno. Pode ser.
Ciência aplicada, teorias metafísicas e uma infinidade de teses tentam desvendar como alguém que nunca viu o mar, o sol ou uma onda consegue encarar situações de risco que fogem ao alcance da maioria dos seres humanos. Mas é possível que haja só uma explicação realmente plausível. Ela está no dicionário de etimologia. Carisma: dom da natureza, graça divina. Talvez uma descrição ainda mais precisa para os fenomenais feitos do nosso surfista especial capixaba esteja num verbete do dicionário de teologia. Carisma: dons do Espírito Santo.
Créditos
Bruno Lemos