Deixa o Galo cantar
Gustavo Galo, da Trupe Chá de Boldo, fala sobre suas inspirações e primeiro trabalho autoral
Disco solo não define o novo trabalho de Gustavo Galo. O cantor e compositor, integrante da Trupe Chá de Boldo há oito anos – banda paulistana com sonoridade carnavalesca -, acabou de lançar Asa, seu primeiro CD sozinho e totalmente independente. Produzido pelos amigos Tatá Aeroplano e Gustavo Ruiz, com participação de alguns nomes como Lucinha Turnbull, Alzira E, Zé Pi, Peri Pane, Ava Rocha e Meno del Picchia.
O álbum é um conjunto de canções inéditas e escritas pelo próprio Galo, com regravações de Walter Franco e Cérebro Eletrônico. Asa é responsável por um voo entre diferentes sonoridades, que desvendam um artista que se expôs de maneira nua e crua.
Para a Trip, ele falou sobre esse trabalho, inspirações e outras parcerias, como no "Tribunal do Feicebuqui", EP lançado por Tom Zé em 2013 e que reuniu novos nomes da música brasileira.
Por que "Asa"? Eu nunca gostei dessa história de carreira solo, de ficar com os pés no solo, sozinho. Um disco é sempre coletivo, e todos os envolvidos nesse processo foram muito importantes desde o começo. Foi um trabalho feito às próprias custas, as casas de show liberaram parte da bilheteria pra gravação e produção na época. No meio disso tudo, pude perceber que o disco era mais antigo do que parecia. Não de composição, mas de como eu cheguei até ali. Lembrei de um pássaro que eu gosto muito, que é o Tiê-Sangue, aquele com a plumagem bem vermelha. E quando eu era bem menino e comecei a tocar violão, eu ia pra um lugar na divisa de São Paulo com o Paraná, na Ilha do Cardoso, e quando chovia o Tiê-Sangue vinha numa folha que ficava perto da janela do meu quarto. Então "Asa" é uma brincadeira com várias coisas, e também com a Brasa – que é a casa onde eu moro e onde concebi o CD inteiro.
E você começou a tocar pequeno? Eu devia ter uns 12, 13 anos.
Sozinho? Não. Eu tinha feito aula de música desde muito pequeno em um lugar que chama Teca Oficina de Música, que é muito legal e uma baita escola. Lá, a criança não aprende a tocar um instrumento específico, ela tem uma aula de musicalização. Constrói instrumento, toca e experimenta tudo a fim de abrir sua percepção geral.
"As experiências dessa época [anos 70] não se esgotaram, tem muitas delas que ainda são novidade hoje em dia."
Tem vários nomes dos anos 70 que a gente consegue relacionar com o seu trabalho. Walter Franco, que você regravou, a Lucinha e o próprio Tom Zé, com o "EP Tribunal do Feicebuqui". É uma época importante para sua influência musical? Eu acho que é fato que os anos 70 e muita coisa que aconteceu na música brasileira me influenciou muito. As experiências dessa época não se esgotaram, tem muitas delas que ainda são novidade hoje em dia. Pra mim, é menos uma referência e mais uma possibilidade de experimentar coisas que não são datadas. Regravar Walter Franco é menos uma homenagem e mais o fato de eu o considerar um compositor muito importante e vital no presente. Ele ainda é uma referência viva pra quem quer experimentar coisas novas, assim como o Caetano e o Tom Zé também. Sempre produzindo coisa nova e pesquisando o novo. Sou mais influenciado por essa atitude em si.
E a inspiração pra escrever? Tem versos que lembram o Leminski e até mesmo o Torquato Neto. Na Trupe sempre foi todo mundo junto criando e tudo construído ao mesmo tempo, muito rápido e coletivo. Mas pra esse disco boa parte das composições surgiram a partir de um texto. Eu sou bem afetado pela construção poética desses caras todos: Torquato, Waly Salomão, Leminski, ArrudA – pra falar de um poeta atual que continua essa relação da poesia e música. Alguns desses nomes inclusive viraram letristas de canções.
Você considera seu trabalho intimista por ele ter sido criado dessa forma? Ele é bem pessoal. É uma coisa que é só minha e parte de experiências próprias. Eu fico pensando se é intimista, acho que talvez seja, ao mesmo tempo em que é um trabalho pro mundo.
Sentiu alguma dificuldade pra criar essa coisa mais pessoal? Se eu não tivesse muito bem acompanhado, teria sim sido difícil. Ser produzido pelo Tatá e pelo Gustavo Ruiz foi como se sentir em casa. Eu sou limitado musicalmente, as vezes eu quero fazer uma coisa que eu não consigo... O mais difícil foi me expor mais. Cantar uma música só voz e violão, pra mim, há um ano atrás era inconcebível. Acho que boa parte das letras que falam mais de sexo e de drogas também acabaram ganhando uma importância maior.
Tem melodias bem diferentes no disco. Você acha que ele se encaixa em algum gênero? Eu acho que ele não tem um gênero definido. O que eu acho é que é um disco de canção. Tem muito mais rock do que eu já fiz, mas também tem só voz e violão. As canções são o ponto mais importante, elas vêm em primeiro plano. Nos últimos tempos, o que me importava era experimentar arranjos e, nesse disco, eu quis trabalhar com uma coisa muito simples, os arranjos são menores e o cantar é o primeiro plano.
A faixa De Aeroplano você fez pro Tatá? Sim, é a canção mais antiga das minhas que estão no disco. Há uns quatro ou cinco anos atrás, eu ouvi numa conversa dessas de bar, que nada de bom tem acontecido na música. Eu rebati e lembrei do Tatá, que é uma figura muito generosa e abriu porta pra muita gente na música ultimamente. Além de ser um grande compositor, ele foi o primeiro cara a antecipar o jeito como a gente vive a música hoje. De uma maneira totalmente independente. Ele é uma referência pra mim.
"Me interesso mais em fazer show e disco [...] Não quero saber se a rádio não me quer"
Tem vários projetos financiados coletivamente, você acha que as gravadoras estão perdendo a força? É muito melhor ser independente porque tem muito mais liberdade, e as pessoas sacaram isso. E acho que ser independente virou até uma vantagem. Não é mais uma batalha como antes, se consolidou como uma atitude e uma postura de maior liberdade. Isso é muito bom. Mas não acho que rola um lugar ao sol, porque as rádios e a televisão, por exemplo, ignoram isso. Os grandes artistas apontados hoje não tocam na rádio. A força vem da internet, de shows. Mas eu me interesso mais em fazer show e disco, o importante é isso. Não quero saber se a rádio não me quer.
Como foi gravar Angela Ro Ro, no "Coitadinha bem feito"? Foi seu primeiro trabalho como intérprete? Considero que tenha sido. Na Trupe eu tinha gravado Mar morro, do Tatá, mas eu não tinha uma clareza muito grande ainda do que era ser intérprete, então não vale tanto nesse sentido pra mim. Com a Angela Ro Ro caiu a ficha, porque eu tive que descobrir algumas coisas. E a convivência com a Alzira E nos shows da Doideca, que a gente canta Itamar, me ajudaram a ter o mínimo de noção do que é preciso pra ser intérprete. É um trabalho muito difícil e que eu, hoje em dia, valorizo muito. Depois desse trabalho, até minhas coisas são mais difíceis de cantar porque eu percebo melhor o tamanho delas, as letras... Tem vezes que acho difícil na hora de cantar e demoro um tempo maior pra conseguir chegar aonde quero chegar. Fiquei mais exigente com interpretação.
E com o Tom Zé, nas gravações do "Tribunal do Feicebuqui"? Tom zé é um cara que vive pra arte que ele faz. O que mais ficou desse trabalho foi essa coisa de transformar tudo em música, a imprensa cantada que ele faz. Tudo é alimento pra ele, até uma notícia no jornal. Sempre está com os olhos e ouvidos muito abertos e concentrado. Foi muito bom também conviver com todo mundo que gravou.
Tem projeto de próximo CD pra Trupe? Tem o projeto de gravar um terceiro disco em maio e lançar provavelmente em agosto desse ano. Vou continuar com o Asa, espero fazer bastante show e depois combinar os dois trabalhos. Esse disco provavelmente vai ser mais coletivo, com mais gente cantando e compondo do que o Nave Manha e o Bárbaro.
Você acredita que depois do Asa venham outros filhos seus? É uma pergunta que eu não consigo te responder. Foi um trampo muito doido fazer esse disco e não me vejo com força pra fazer outro daqui a pouco. Com a Trupe sim porque somos em 13 pessoas, todas muito entregues a um trabalho que vem de muito tempo. Eu nem imaginava que ia fazer um disco solo.