De quebrada em quebrada
O Espaço Rap bomba no Ibope há mais de uma década com pouco patrocínio e muita correria
Atravessando todos os muros, inclusive os da prisão, o Espaço Rap , principal programa da 105 FM de São Paulo, bomba no Ibope há mais de uma década. Tem pouco patrocínio, mas muito salve e correria
“Não pode mandar recado para a cadeia”, já avisa Guta, a telefonista que filtra as ligações dos ouvintes que querem entrar no ar e mandar seu salve no Espaço rap, o maior e mais tradicional programa de rap nacional, transmitido pela rádio 105 FM. O centro do sistema nervoso do hip hop do país funciona em um pacato bairro de classe média em Jundiaí. Dali transmite para uma audiência estimada em 400 mil pessoas só na Grande São Paulo. Mas o alcance e a influência da rádio vão além. Ela chega mais de 250 cidades do interior, sul de Minas e norte do Paraná. Com os novos celulares e a internet o programa tem ouvintes de qualquer lugar. “Um dia falei para o cara boa noite e ele respondeu bom dia, tava ligando da fábrica da Toyota no Japão”, conta Fábio Rogério, apresentador da Parte “II” do programa, que vai ao ar entre 20h e 23h. Embora toque um pouco de rap gringo, o forte e a fama do programa são mesmo os clássicos e novidades nacionais, da quebrada para a quebrada.
Nuno Mendes, um dos fundadores do programa junto com o DJ Easy Nylon, e apresentador da “Parte I” (das 18h às 19h), sabe que o espaço ali foi conquistado e é defendido 100% na base do apoio popular. “No começo Espaço Rap era só uma vinheta para os Racionais, que tocavam em todas as rádios com ‘Fim de semana no parque’. Era para as músicas deles não destoarem do resto. Depois conseguimos um especial de meia hora para o rap nacional. O telefone da rádio quase derreteu de tanta ligação.” De especial virou meia hora semanal, que virou meia hora diária, e hoje ocupa quatro horas da programação da rádio. Como sempre teve dificuldade de atrair anunciantes, a 105 criou o esquema de fazer eventos e lançar coletâneas com o nome do programa para faturar com ele. Até a crise da indústria da música com a pirataria e a internet destruir a venda dos CDs.
AS 10 MAIS DO ESPAÇO RAP DA 105 FM*
01 – “Só pra lobo mal” – A Família
02 – “Homem na estrada” – Racionais MCs
03 – “Baseado em fatos reais” – Detentos do Rap
04 – “Bate pesadão” – Pregador Lu
05 – “Lembranças” – Consciência Humana
06 – “Mente do Vilão” – Banda Black Rio
07 – “O resgate” – Realidade Cruel
08 – “Vida Louca Parte II” – Racionais MCs
09 – “A vida é desafio” – Racionais MCs
10 – “Fórmula mágica da paz” – Racionais MCs
*Na semana em que estivemos por lá
Ligações e cartas da cadeia
A popularidade dentro do “sistema” [prisional] é tema delicado, já que leva o programa a ser vítima do mesmo preconceito que atinge a música e muitas vezes as pessoas da periferia. Na audiência tem mulheres, playboys, famílias e gente como dona Emília, ouvinte famosa de 70 anos, moradora do Capão Redondo. Mas se o público que está “cumprindo um tempo” não é medido pelo Ibope, marca presença nos contatos com a rádio. “A gente já nota pelo barulho de fundo que o cara tá ligando da cadeia”, explica Guta. Outra forma de comunicação forte com quem está do lado de lá é o clássico correio. “Cartas só recebo de quem está na cadeia. Uma média de 30 por mês”, conta Fábio. E-mail, SMS, telefone e Orkut também não param enquanto ele está no ar.
Para a vida sofrida de qualquer um, dentro ou fora da prisão, na periferia ou não, o programa oferece músicas com identidade e narrativas fortes, fora o papo reto dos apresentadores. “A gente serve de psicólogo também. Eu leio muito para dar uma mensagem de autoestima para o pessoal que ouve o programa.” Nas suas três horas diárias no ar, Fábio também se empenha em mostrar as origens das bases usadas no rap, contar a história da música negra americana e brasileira, intermediar recados amorosos e prestar serviços como anúncios de vagas de emprego.
Nuno não tem dúvidas de por que o Espaço Rap segue no ar. “Eu acho que o programa não vira para a rádio financeiramente. Mas ele levanta a audiência. Para ter um anunciante grande à tarde, é importante o Espaço rap à noite”. Mesmo com a tradição, e a empatia com um público enorme, principalmente entre jovens e famílias dos decantados consumidores “emergentes” das classes C e D, anunciantes maiores ainda resistem a mandar um recado pelo Espaço Rap.
Fábio, mande aí seu salve: “O pessoal às vezes acha o rap violento, mas é a realidade. É uma das músicas mais sinceras e por isso ele é tão aceito”. E para quem vai seu salve, Nuno? “Você vai a um baile na periferia e 80% da molecada usa Nike. Mas a Nike não quer aparecer aqui.”
Vai lá: Espaço Rap, 2ª a 6ª das 18h às 19h e das 20h às 23h. Sábados, 15h às 17h30 e domingos das 14h às 15h e das 21h às 23h. www.radio105fm.com.br
Rádio, o melhor amigo do preso
Nosso colunista conta a importância que o rádio tem para tornar menos sofrida a vida atrás das grades
Por Luiz Alberto Mendes*
Quando cheguei à prisão a única coisa fora do padrão do local que o preso podia ter era um rádio de pilhas de uma faixa: AM; ainda não existiam rádios FM. As celas eram individuais e a porta só era aberta para duas horas de recreação, três vezes por semana. O rádio era o melhor amigo do preso. O companheiro de todas as horas. Era a maior correria para conseguir pilhas. O país não possuía a abundância de agora. O personagem mais importante da prisão era o consertador de rádios. E os radinhos eram frágeis, quebravam demais. A gente nem conseguia dormir quando dava problema, ficava sentindo a maior falta.
Nas regras da cadeia, o rádio não podia ser emprestado, vendido nem sair da cela. Havia uma autorização assinada pelo diretor da prisão para poder ter um rádio. Um dos mais temidos castigos era perder essa autorização. E, ao menor vacilo, esse direito nos era tirado por seis meses. A vida ficava mais dura. Era preciso usar rádio clandestino. Mas se eles pegassem o castigo dobrava. Era sentença de amargura e infinita tristeza para o preso.
Com a política de “direito humanos”, iniciada pelo secretário da Justiça José Carlos Dias, foram autorizados rádios maiores, e as estações FM começavam a proliferar. Depois vieram as televisões, e esses aparelhos dominaram o cenário. Mas até hoje quase todo preso ainda tem seu radinho individual. Para ouvir música embaixo do travesseiro antes de dormir, acompanhar os noticiários pela manhã ou para tirar endereço das “minas” que pedem correspondência. Ainda hoje o rádio é companheiro muito querido pelo preso.
* Luiz Alberto Mendes, 56, é autor de Memórias de um sobrevivente, sobre os 31 anos e 10 meses que passou na prisão.