De novo atrás das minas

Enquanto um mundo em crise busca saídas para o futuro, um grupo crescente de americanos tenta ganhar a vida como se fosse 1848

por Bruno Torturra Nogueira em

Enquanto um mundo em crise busca saídas para o futuro, um grupo crescente de americanos tenta ganhar a vida como se fosse 1848. Trip entrou na caravana de jovens porra-loucas e ambiciosos vovôs para garimpar as histórias e pérolas da nova corrida do ouro

É, parceiro, não é fácil ser americano hoje em dia. Você liga a TV e está na cara: a economia no buraco, indústrias embolorando, famílias lascadas e sem onde morar. Muda de canal e pronto: gays casando, crianças lascivas, seu time tomando esteroides e desenhos animados sobre maconha. E ali, todo dia na telinha, você precisa engolir um presidente socialista, irresponsável, a favor do aborto e, quem sabe, dos terroristas. Até sua igreja, cruz-credo, está cheia de gente que votou no homem. Um sujeito de nome árabe que quer tirar seu direito de andar com uma .45 no porta-luvas. E que ainda por cima é ne... Esquece. Melhor fingir que essa América não está ali. Afinal, entre um programa e outro, um reclame mostra o caminho: “Você, hard working patriot american, já pensou em garimpar eouro?”.

Gary, Rachel, Doug e Mike não haviam pensado no assunto até então. Deus abençoe a TV que os trouxe aqui, ao redor da fogueira, espantando mosquitos e tomando um café enquanto o sol ganha altura para mais um dia de prospecção ao redor do rio Stanislaus, na Califórnia. Eles têm panelões, peneiras, pás, dragas, baldes e toda a sorte de equipamentos para cavucar as margens e separar o joio do ouro. Eles têm trailers, motor homes e barracas instaladas por ali, no camping da Italian Bar Road, estrada estreita, cheia de curvas, que beira vertiginosos barrancos na saída de Colúmbia – uma das cidades no leste da Califórnia que, desde meados do século 19, vivem a estética, a reputação e a mentalidade da corrida do ouro americana.

“Este país foi feito pelo garimpo. E se quiser sair desta situação vai ter que achar muito ouro de novo. Mas não vai ser fácil”

Naqueles tempos, a partir de 1848 e durante a década seguinte, homens de uma coragem suicida defloraram serras, rios e vales em busca do ouro que cintilava em polpudas pepitas fáceis de achar. Gente do mundo inteiro veio até aqui, de olho no farto dourado e nas ofertas de cidadania para quem garimpasse nas terras sem dono por ali. A ambição amparada pela lei rendeu a riqueza que preparou os EUA, com toneladas de ouro, para o século 20. E espalhou a sede pelo metal para outros Estados do oeste – Arizona, Nevada, Oregon, Washington... O espírito de esforço, autossuficiência e alguma paranoia moldou muito da cultura patriota da América e, claro, o desejo de fazer fortuna em questão de meses.

 

Colúmbia, assim como suas primas vizinhas, era um dos entrepostos principais da compra e venda do ouro e dos estabelecimentos que sutentavam a população casca-grossa. Saloons, ferreiros, mercados e bordéis atendiam uma massa flutuante de forasteiros. Só na Califórnia, entre 1849 e 1855, foram mais de 300 mil sujeitos garimpando bilhões de dólares. Mas hoje, no lugar dos bordéis e da estação de trem a vapor, estão centros de apoio ao turista e escolas de garimpo. Espécies de workshops de fins de semana para famílias entenderem como se acha ouro no meio da natureza. Mas não confunda Jamestown com uma cidade temática. Apesar dos turistas diários, é um dos poucos lugares do mundo onde você topa com um sujeito como Stan.

Mãos ásperas como asfalto, saindo de um saloon ao meio-dia com um Colt calibroso enfiado na cintura, 65 anos. “Este país foi feito pelo garimpo. E se quiser sair desta situação vai ter que achar muito ouro de novo”, postula o garimpeiro de uma vida inteira, que divide seu tempo entre cavucar pedras e rios e ensinar turmas de crianças em excursões escolares. “Mas não vai ser fácil”, continua, “principalmente hoje, com tanta gente preguiçosa nesta terra.”

Bodas de ouro

Preguiça não é um termo aplicável a Rachel, não, senhor. Antes das sete ela se levanta no motor home onde vive com o marido e vai atrás de pepita. “Pepita! Pepita!”, ela grita, chamando sua pequena poodle. Afaga a cachorrinha, toma seu café, beija o pingente de ouro que carrega no pescoço e vai à beira do rio Stanislaus começar a labuta. Basicamente, ela joga terra das margens dentro de peneiras e esteiras de tamanhos e ondulações diversas. E espera a sorte e a gravidade depositarem o ouro (quase o metal mais pesado do planeta) no fundo do tacho.

Como Rachel tem muitos por ali. Aposentados sexagenários que não aceitaram uma vida diante da TV, a mesma que, invariavelmente, lhes deu o caminho das pedras. As economias viraram um trailer ou uma boa picape. O cheque da previdência paga a comida e a gasolina. E o ouro que garimpam serve mais como um triunfo do que como fonte de renda. Nem Rachel, nem Doug, nem Mike, nem os irmãos Dan e William venderam 1 g do que encontraram. O ouro fica todo em potinhos, meticulosamente limpo e pesado. O garimpo para eles tem muito mais um sentido de jogo do que de trabalho. Diante de seus sorrisos e bom humor enquanto cavam pedras debaixo do sol, a prospecção de Stanislaus mais parece um bingo do que uma loteria. Mas nem todos vivem naquelas barracas por mera recreação. Uma minoria mais discreta e muito mais disposta se espalha pelo condado tentando sobreviver.

Principalmente agora, depois da crise financeira mundial, que fez o grama do ouro disparar sem chance de recuo. De 2005 pra cá, o preço mais do que dobrou em uma escala contínua e acelerada. À medida que dólares e papéis financeiros vão cambaleando ao estranho “humor do mercado”, o bom e confiável dourado fundamental seduz mais do que olhos. No começo de 2005, uma onça troy (coisa de 31 g) valia pouco mais de US$ 400. Enquanto este texto é escrito, toca na casa dos US$ 1 mil. No acampamento da Italian Road Bar a fofoca é que em questão de dois anos a tarifa vai dobrar. Aí, quem sabe, até os recreativos extratores vão vender sua dourada coleção. “É nossa poupança”, resume Rachel com Pepita, a poodle, no colo. E uma pepita de ouro pendurada no pescoço.

A escalada do preço, em conluio com o fracasso econômico da América, está provocando o que alguns vêm chamando de Nova Corrida do Ouro. Há certo exagero no termo quando alguém chega ao acampamento da Italian Bar e depara com os idosos gatos pingados. Mas há mais do que um fundo de verdade quando entramos na propriedade de Rob Goreham, 40 anos de idade. É ele quem entende do riscado nos arredores de Colúmbia. Tem uma loja de material para garimpo e extração – a renomada 49er Mining Supplies – e vive em função de achar ouro em terras públicas. Enquanto nossos amigos grisalhos peneiram o rio defronte suas barracas, Rob vive em uma ampla casa, em um enorme terreno com vista para as montanhas. Ele passa todos os seus fins de tarde na varanda, peneirando e separando baldes de terra ricos em ouro.

 

O homem da pistola de ouro
Fala, Rob, é uma nova corrida do ouro ou não? “Bem, no último ano o número de gente que chega aqui para comprar equipamento e aprender a garimpar subiu 30%. Há desde gente que perdeu o emprego até quem está cansado de tentar ganhar dinheiro na cidade.” E o que acontece com eles? “Em geral? Gastam muito mais do que ganham... É como dirigir um carro de corrida. Você não pode simplesmente decidir fazer isso só porque sabe guiar um carro. Tem que aprender, saber os truques, ter paciência. Senão você pode até morrer, entende?” Rob conta que há, sim, muita gente naquelas montanhas e rios vivendo apenas da extração, e que tudo ficou mais fácil, é claro, depois da alta do ouro. Também entrega que achar esse povo, assim como fazê-lo falar, é muito difícil. “Por que uma pessoa vai mostrar em uma revista onde achou uma boa jazida? Por que vai mostrar a cara de graça pra você? Provavelmente vai querer dinheiro, entende? É por isso que estão aqui.”

Falando em dinheiro, Rob, você poderia nos mostrar algum ouro? Sabe o que é? Fica difícil fotografar aquele pozinho que o pessoal acha por aí. “Hmmm... OK.” Ele pede para voltarmos em uma hora para ter tempo de ir ao banco abrir seu cofre. Quando chega de volta, ele carrega em uma mão uma pilha de quatro bandejas aveludadas e na outra uma pistola de alto calibre. Quando chega perto, engatilha a máquina e a coloca no coldre. Calmamente, senta-se para explicar cada uma das muitas variedades de ouro que carrega consigo.

O peso da onça troy é apenas uma referência. O que realmente determina o preço do ouro é o tamanho da pepita e que forma ela tem. Quanto maior e mais bem formada, quanto mais próxima da forma pura e bruta do ouro natural, mais cara é a peça. Um bom pedaço de ouro, sem impurezas e bem fornido, custa até o dobro do seu valor em gramas. Rob tem ali ouro em pó, em flocos de tamanhos diferentes, pepitinhas boas para joias, peças mais robustas com valor para colecionadores e investidores e algumas escandalosas pepitas de mais de 100 g que transformam aquelas bandejas em uma pequena fortuna. “Tudo ouro da Califórnia”, ele confessa, “tudo achado por nossos amigos.”

Assim como todos que se aventuram na região, Rob não é muito chegado aos ambientalistas. “Eles não entendem nada de natureza, não sabem o que significa preservação”, insiste. O garimpo ao redor dos parques nacionais, e muitas vezes dentro deles, se baseia em uma lei de 1872 que garante ao cidadão (e ao imigrante) o direito de buscar ouro e outros minérios preciosos em terras selvagens. O que grupos como o Sierra Club e outras influentes instituições ecológicas querem é praticamente encerrar a extração nas áreas naturais e deixar os rios e a lama seguirem seu curso.

Quando Rob chega perto, engatilha a pistola, coloca no coldre e mostra calmamente, toda a variedade de ouro que carrega consigo

 

“O que eles não sabem”, Rob resume, “é que nosso garimpo é mais ecológico do que a vida que eles levam.” O argumento é que as práticas predatórias como a remoção de grandes blocos de terra e desvio de curso de rios já foi extinta há muito tempo. Mercúrio não é utilizado em hipótese alguma e, mais do que isso, as dragas de pequeno porte e as pás que removem as pedras dos rios são responsáveis pela limpeza e oxigenação extra da água doce, ajudando muito o depósito das ovas dos peixes locais e a vida aquática.

Argumentos válidos ou não, é verdade que todos os garimpeiros com quem a Trip conversou pareciam ter uma sincera preocupação ambiental. Apesar da repulsa aos “liberais de San Francisco”, como tantos desdenharam, parte da fissura em buscar ouro na Califórnia se deve a uma genuína vontade de estar cercado pela natureza e longe do louco mundo da cidade. Veja o caso de Dan Zimmanck.

Ele sobrevive apenas do ouro e da pensão da mulher, Louise – considerada inválida pelo governo depois de sofrer um atropelamento. Mesmo com o joelho e a coluna comprometidos, ela cava e mergulha como qualquer homem rústico atrás das pepitas. Desde os 14 anos de idade, quando viu na TV um comercial sobre garimpo, Dan não pensa em outra coisa a não ser achar pepitas. O motivo da paixão imediata para o então chapeiro do McDonald’s é que viu no garimpo o único jeito de passar a vida entre rios, árvores e animais.

O casal vive em um motor home, rodando o oeste e arriscando a sorte. Seus dois cachorros ficam sempre amarrados, seu lixo é dividido em saquinhos para reciclagem e todos os buracos que cavam são devidamente tapados antes de deixarem o lugar. Todo seu dinheiro está em cash ou nos potinhos de ouro. Dan orgulha-se de suas maiores conquistas materiais: um iPhone 3G, um Playstation 2 e uma TV de plasma pendurada em frente à cama no diminuto quarto móvel. Porém, é a total ausência de chefe, de autoridade e de civilização que deixa Dan orgulhoso de si mesmo.

“Não gosto do Obama, não, senhor”, diz ele, fazendo coro com os homens de Colúmbia. “Ele quer acabar com nosso modo de vida. Ele acha que dinheiro vem da prensa, que é só fabricar dólar para dar para os bancos que tudo vai ficar bem. Ele estudou tanto mas não sabe do que este país foi feito”, e abre a mão para mostrar uma diminuta pepita de ouro. “Isto é riqueza. Deus colocou isto no mundo para a gente ser livre.” Dan devolve a lasquinha ao pote, escora uma pá no ombro e some no mato atrás do ouro de cada dia.

 

Crédito: Domenico Pugliese
Crédito: Domenico Pugliese
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