Ícone do site Trip | Conteúdo que transforma

(De) formação

Será só
coincidência que as palavras “formação” e
“informação” pareçam opostas uma da outra?
Sim. O prefixo “in” aqui, diria o glorioso professor Pasquale,
não significa negação, mas interiorização.
“Infor­mação”, sabemos, não é
“deformação”. Ao contrário, é aquilo
que vem de fora justamente para nos formar. Bife. Cachoeira. Trovão.
Drummond. Micróbio. Tudo é informação.
Cada vez mais. Até a física começa a cogitar a
idéia de que talvez o mundo não seja feito de
partículas propriamente físicas – mas de informação.
O átomo, que reinou uno durante séculos e foi divido
nas últimas décadas, pode sumir. Para dar lugar ao bit.
Não só no computador, mas como ele­mento essencial
da existência. Agora, como explicar que um pedaço de carne ou um litro de
água possam ser formados de bits, partículas não
só infinitamente pequenas como também abstratas? E não
só abstratas como também mutantes – um/zero, sim/não?

Jonh Archibald Wheeler,
pioneiro da física relativista e quântica, talvez o
único colaborador ainda vivo tanto de Einstein quanto de Niels
Bohr, não se assusta com um certo princípio de
incerteza contido nessas novas perguntas. “O que chamamos de
realidade nasce em última análise da colocação
de perguntas cuja resposta é sim ou não”
, ele escreve
com a falsa ingenuidade dos velhos sábios. E adiciona: “Tudo
que é físico é na origem informacional, teórico.
Este é um universo participativo”
, afirma. “Assim,
entramos na Era da Informação, em mais de um sentido”
,
completa James Gleick, autor de livros definitivos sobre Newton e a
Teoria do Caos, agora debruçado sobre a virtualização
do mundo real.

E, se matéria
pode ser informação, informação também
pode, talvez, ser matéria. Pode ocupar um espaço físico
no HD da humanidade. Pode enriquecê-lo de maneira inédita,
agora que as vias de distribuição da rique­za
virtual são abundantes. Mas pode também saturá-lo.
É aí que os sentidos de “informação”
e “deformação” se aproximam. A enxurrada de bits
que nos formam pode estar gerando uma epidemia de obesidade mental.
“Informação impensada deforma”, deveria advertir o
Ministério das Comunicações ao homo midiens. Não
há saída para a questão ambiental enquanto não
se entender que o excesso de dados também é poluidor.

Eu estava num dia mais
otimista há uma semana, quando navegava impreciso pelo espaço
virtual. Caí no ranking das notícias mais lidas do dia,
no UOL. “Silvio Santos faz Dança do Siri com o Pânico”,
era a primeira. “Bruna Surfistinha muda a capa do livro”, a
segunda. Em que pese o esforço do portal no destaque a artigos
relevantes, a página me fez desabar na real. Mesmo que haja
uma quantidade inédita de pérolas culturais disponíveis
àqueles que se dispõem a garimpá-las, o fluxo
global de dados é, de modo geral, um rio Tietê.

E não que eu
defenda algum ecofundamentalismo informacional. Uma das funções
saudáveis da informação é a de
“desformar”, esvaziar. Bom que nos tire um pouco de nós
mesmos. Mas que não nos coloque num círculo vicioso
entre a obesidade mental e a anorexia. A liberdade de expressão
é um chão sagrado que conquistamos e que deve ser
defendido, mas a questão pede hoje um novo raciocínio.
Numa época em que fato apaga fato, escândalo esconde
escândalo, valor dilui valor, como harmonizar a livre
circulação de idéias com a capacidade de
recepção delas? Como impedir que a liberdade de
expressão se transforme, pela saturação, em
censora de si própria?

Não tenho
respostas definitivas. Mas acredito que elas possam ser encontradas
justamente na etapa de formação do indivíduo. Na
educação. Aqui também a informação
deve ser matéria. Matéria escolar. Para que os alunos
desde cedo exercitem a edição, instrumento vital num
mundo lotado. Sempre que uma autoridade diz que a tecnologia vai
levar a educação mais longe, me pergunto por que
ninguém pensa no inverso. Bom que a educação se
insira na tecnologia da informação. Melhor ainda que a
tecnologia se inserisse na educação. Para ser pensada.
Quando é que os alunos do ensino fundamental e médio
vão ter aulas de gramática audio­visual,
relatividade da realidade mediada, ilusão da celebridade ou espetacularização
da história?

Os tempos mudaram. Esta
é a época em que alguém pode se viciar em
e-mail. Em que um presidente pode ser derrubado por uma aventura
sexual que caia no gosto midiático, mas não por matar
milhares de pessoas injustamente. Em que a Bruna Surfistinha, a Dança
do Siri e, pior, o Silvio Santos
importam mais que qualquer outra notícia. Sem reflexão
sobre a informação, não pode haver formação
digna do nome.

Sair da versão mobile