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De Bagdá à Martinica

   Está tocando agora no rádio uma música cafonérrima que eu amo. É uma canção antiga dos Pet Shop Boys que conta a história de um cara na pista de dança, fazendo uma reflexão profundamente filosófica. E cantando: ?Há tiranos sangrentos no Afeganistão, pessoas envenenando o metrô do Japão… e eu só quero que esta música dure para sempre…?. Engraçado isso estar tocando agora. Digo ?agora?, apesar do óbvio de que o meu ?agora? não é o teu ?agora?. O meu mundo não é o teu mundo. Nunca é. E no nosso caso ainda menos. Entre eu escrevendo aqui e você lendo aí, passam no mínimo uns trinta dias. É o tempo da edição, impressão e distribuição da TRIP. Então toda vez que eu sento aqui para escrever, inevitável que role algum titubeio quando aparece a palavra ?agora?. Inevitável também que eu tente alguma previsão sobre o está acontecendo no teu mundo. Agora.


 


Stop making sense


   Como todo exercício de chutorologia, geralmente dá errado. Hoje aqui é quarta-feira de Cinzas e você já está pelo menos aí em abril. Minha habitual aflição em relação à nossa distância, amado leitor, está ainda mais ampliada por um momento histórico crucial. Estamos (estou) na provável véspera de um ataque ao Iraque e de tudo que isso representa, não só enquanto medo do futuro, mas também enquanto consumação de um momento já presente de violência generalizada. É a guerra. Faz sentido escrever sobre outra coisa? Então permita, leitor hipotético, que este colunista quase hipócrita lance-lhe daqui um míssil imaginário carregado com a pergunta mais letal deste início de século. O Bush já atacou o Saddam?


   Ah, o sul da Bahia. A verdade é que este colunista quase hipócrita ? e em férias ? não queria nem fazer essa pergunta, nem ter que ficar inventando opinião enquanto a tão poucos metros da cadeira dele, bem para cá de Bagdá, uma praia deserta do sul da Bahia estatela-se para o sol e derrete o sentido de qualquer opinião. É assim. Desculpem a alienação. Eu poderia até dizer que é Carnaval. Mas não é isso. Também não é firula. Não é tipo. Nem é uma alienação lenta e raciocinada, um desregramento rimbaudiano de sentidos. Ao contrário, é como se eu tivesse sofrido algum ataque terrorista fulminante e benigno, vindo de alguma deusa do mar. Se bem me lembro, acho que me alienei instantaneamente no sábado. É, acho que foi no sábado, no instante em que eu emergi do primeiro mergulho, senti o gosto salgado na boca e lembrei que o mar é a mãe de todas as drogas. Foi aí que eu esqueci de tudo. A memória é solúvel. Em mar. O Bush já atacou o Saddam?


   Está mesmo difícil de escrever. Sério. Naquela segunda-feira, naquele 11/9, já não estava mais do que óbvio que era o fim do mundo. O fim de um mundo. Quem não percebeu? Quem não sentiu o impacto físico daquele ataque? Agora eu só quero dar um mergulho. Eu tenho um filho de 2 anos. Que é lindo. É lindo como a mãe dele. É lindo como a minha mãe. E a gente estava brincando ontem na beira d?água. Tinha só mais três pessoas na praia. Uma preta velhinha, simpática, sentada ao lado de um cestão de palha. E um casal de burgueses balzaquianos paulistas. Ela com uma prótese de silicone no popô. Esquisitíssima. Era como se fosse uma propaganda da Skol e a cerveja quadrada tivesse ido parar na bunda dela. Já ele era um daqueles fortões tardios, uma espécie de picolé humano que derrete no congelador quando falta luz e depois recongela errado.


   Aí apareceu um carrinho de mão todo escangalhado, desses que vendem coco e milho, pipoca doce e espetinho de camarão. A uns cinqüenta metros de nós. Tinha a palavra MARTINICA, vistosa, escrita num dos lados. Meu filho saiu correndo na direção do carrinho e beijou. Ele beijou a palavra MARTINICA. O Bush já atacou o Saddam? Ainda não sei. Só sei que, se a pergunta estivesse escrita no carrinho, no lugar da palavra Martinica, em letras vermelhas sobre o fundo branco, meu filho teria beijado. Ele teria beijado.


 


*Carlos Nader é um homem de mídia e um pai preocupado com a guerra. Seu e-mail é:  carlos_nader@hotmail.com

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