Da periferia para a periferia

Filmando clipes para novos nomes do hip hop, Toddy Ivon quer mostrar a realidade das ruas

por Luiz Filipe Tavares em

Nascido em família humilde e encantado por fotografia desde os 8 anos de idade, Toddy Ivon juntou suas duas maiores paixões em um projeto: produzir clipes de rap feitos na periferia e para a periferia, usando a internet como maior meio de divulgação de seu trabalho. Pagando tudo do próprio bolso, ele produziu 20 vídeos em um ano e meio, conseguindo quase dez de milhões de visualizações no YouTube.

Artista visual com experiência em televisão, Toddy largou tudo para seguir seu velho sonho e trabalhar lado a lado com alguns dos maiores nomes do hip hop brasileiro. Gravou com Emicida, Rashid, Projota, Terra Preta, Karol Conká e um trabalho com a Cone Crew Diretoria, que tem participação especial de Mr. Catra, MC Shaw (Shawlin), Ramiro, Jackson, Hélio Bentes (Ponto de Equilíbrio), Tico Santa Cruz (Detonautas), Hyldon, e  Marcelo D2. Além disso, o diretor reserva ainda mais uma série de artistas que, como ele, venceram as estatísticas para ocupar um lugar ao sol. Em 2012 ele se prepara para invadir os domínios do samba, produzir ao lado de seus ídolos dos Racionais MCs e continuar seu laboratório para cair de cabeça na produção de longa-metragens.

Conversamos com o diretor de clipes para falar sobre as inspirações do seu trabalho, a quebra dos estereótipos no rap - e na música em geral, a questão das cotas raciais nas universidades e muito mais.

Como foi que você começou a trabalhar com vídeo, o que te inspirou?
Quando eu tinha oito anos, frequentava muito a casa de um tio que era fotógrafo da revista Manchete. Ele cobria muito o Carnaval e me deu minha primeira câmera fotográfica, uma Canon analógica. Curiosamente também me deu minha primeira fita K7... [risos]

E o que tinha nessa fita?
Era uma fita gravada com música do Duke Ellington e da Ella Fitzgerald. E ele sempre estava me bombardeando com as coisas que trazia de Nova York. Daí em diante comecei a pegar gosto pela fotografia. Ele me ajudava, comprava os filmes, revelava pra mim no laboratório da Manchete, trazia câmeras e me passava as noções. Ele me ajudou pra caramba no começo. Aí na adolescência me afastei um pouco, mas já sabia que gostava de trabalhar com isso. Nessa época comecei, de certa forma, a me identificar com o movimento da black music.

E quando você começou a trabalhar com isso?
Anos depois disso eu fui trabalhar na TV [Toddy também é designer e faz motion graphics para vinhetas para canais como Record e Rede TV]. Trabalhando algum tempo com televisão vi como eu sentia falta de ver ali as músicas que realmente tocam na rua. Eu não via clipe de samba, clipe de rap... Não era tão comum quanto dos outros estilos. Me perguntava os porquês e não conseguia entender. Foi aí que eu resolvi sair e começar meu projeto de produção de videoclipes com esse assunto: a música que é produzida na periferia e o que a periferia ouve. Eu queria gravar isso e mostrar, produzir ao lado desses artistas.

Esse interesse pelo rap foi o que te motivou mais?
Na verdade, sempre me interessei por música de um modo geral. Meu pai e minha mãe são músicos evangélicos e sempre foram muito ligados em música. A comunidade evangélica que frequentávamos respirava música. Teve um momento na minha vida que eu descobri o rap, e foi aí que tive vontade de começar a produzir esses clipes. O mercado é muito carente nesse sentido e eu quis fazer parte disso.

Daí até a gravação do seu primeiro clipe, quanto tempo?
Demorou um pouco. O primeiro clipe que gravei foi em 2 de fevereiro do ano passado. Foi o clipe do Terra Preta chamado "Crises". Foi bem na época que o Emicida estava lançando o "Triunfo", coisa de dois meses antes. Nessa época estava conversando com o Thaíde e ele até brincou falando: 'esse clipe do Emicida revolucionou o mercado do rap'. E é verdade, porque tinha acabado essa história de clipe de rap. Fazia seis anos que não aparecia um assim. O Cabal até tinha lançado vídeos, mas fazia tempo que não aparecia um produzido na periferia. A minha ideia era usar esse clipe para fazer um laboratório e estudar. Eu conheci o Terra Preta em um show dos Racionais MCs, no mesmo dia que também conheci o Emicida. E foi daí que começaram as conversas. O pessoal gostou muito na internet e isso foi muito legal.

"Trabalhando com televisão eu vi como sentia falta de ver ali as músicas que realmente tocam na rua. Foi aí que eu resolvi sair e começar meu projeto de produção de videoclipes com esse assunto: a música que é produzida na periferia e o que a periferia ouve."

Foi um passo importante, especialmente por ser uma mídia nova pra você...
Justamente. Eu tinha experiência na TV, mas nunca houveram muitos clipes, nesse estilo, criados na periferia. O rap sempre foi meio afastado da TV por conta do teor das letras, da militância... Na TV, só encontrei portas fechadas. Mas, em compensação, descobri esse espaço muito aberto na internet. As pessoas da periferia estão na internet e estão ligados. E foi justamente esse pessoal que curtiu o clipe. Tive uma boa aceitação online enquanto na TV houve mais dificuldade. Hoje a situação já melhorou, estão saindo cada vez mais clipes de rap e com qualidade bem aceitável. De um ano pra cá as coisas já estão melhorando.

Quantos vídeos de música você já gravou de lá pra cá?
Bom, em um ano e meio eu já produzi 17 clipes de black music, mais três clipes gospel. Isso foi muito legal, eu sabia que era um investimento de tempo para mostrar meu trabalho e para as pessoas se interessassem por ele. Eu sabia que os frutos desses vídeos viriam com o tempo. Desses 20 clipes, só um deles teve investimento do artista. Todos os outros fiz com investimento 100% meu. Os artistas não pagaram pelos vídeos. Com isso, trabalhei sempre com meu próprio crivo de avaliação: se acho a música legal, vou lá e faço. E tudo isso culminou em novas oportunidades para mim nesse ano. Agora eu também quero fazer esse barulho no samba, no pagode. Estou produzindo clipes para os De Paula, que são filhos do Netinho de Paula. Funcionou muito bem no rap, então já estou trabalhando no sentido de produzir clipes também para grupos de samba.

Tem algum favorito entre seus trabalhos?
É difícil escolher, mas eu gosto muito do "Nova Ordem", com o Emicida, Rashid e Projota. Tecnicamente não tem nada demais, a não ser que ele foi produzido em menos de 24 horas. Tudo em 24 horas. O Nave mandou o beat pros MCs, que escreveram a letra no mesmo dia que receberam o beat, e eu fui gravando todo o processo. Então em 24 horas a gente produziu uma faixa e gravou um clipe inteiro, com todo mundo acompanhando tudo. Depois teve um que foi muito marcante que foi o "Pode se envolver", do Projota, o da Karol Conká, que foi muito legal também, porque muita gente veio a conhecê-la por causa desse clipe. Gosto muito desse "Chama os Mulekes", do Cone Crew Diretoria, que foi um recorde dentro do rap. Com ele, em menos de quatro dias conseguimos um milhão de execuções. E foi legal porque casou o nosso lançamento com o lançamento de um clipe do Justin Bieber e mesmo assim a gente ficou na frente dele em número de views na primeira semana [risos].

E entre os que estão nos planos? O que vem de melhor por aí?
Estou muito animado em trabalhar com o Ice Blue no disco novo dos Racionais, que já tem uma faixa pra virar clipe muito em breve. Também estou animado para trabalhar com os De Paula, que vão investir em um formato novo que eu espero que todo mundo goste. Estou bem feliz com esses projetos.

Qual a importância do videoclipe para o artista independente?
O que torna os clipes importantes é justamente a internet. Você tem ali aquela janela de visibilidade. Quando você viabiliza um clipe, através de uma parceria, você consegue mostrar o que o artista quer passar com um bom nível de qualidade, já que o público está cada vez mais exigente. O pessoal aceita bem o material na internet. E isso é bom para dar uma imagem para a música desses artistas, o que ajuda muito. Teve um caso até da música "Vou ser mais", do Rashid, que encontrava alguma resistência entre os fãs. As pessoas não gostavam muito da música, mas adoraram o clipe. Aí a música virou sucesso, desses que ele canta em todos os shows.

Como negociar as ideias na direção? Como lidar com o artista que discorda do que você quer fazer?
Eu acredito na parceria. Tento me tornar amigo dos caras, conversar, trocar figurinhas... Muitas vezes eles já chegam com algumas referências e eu sinto a viagem do cara. Na cena independente os artistas têm liberdade para fazer o que eles quiserem. Então eu não posso ser um elemento que chega para travar o cara. Tento sempre entender as ideias do cara e dar um apoio para a gente criar alguma coisa. Eu não faço qualquer trabalho, não vou fazer uma música que eu sei que vai ser ruim pra mim. Estou pré-produzindo o clipe novo dos Racionais com o Mano Brown, por exemplo, e eles já vieram com uma ideia de roteiro, que tem o jeito deles de se expressar. Tanto o Brown quanto o Blue gostam de se envolver. Então é preciso se adaptar. O que acho legal é deixar o cara falar e encarar a ideia dele como um desafio pra mim.

No seu perfil no Twitter você tem uma frase muito forte: "o filho da empregada que quer ir mais longe o que o filho do patrão". O que isso significa para você e como isso pode ser uma realidade?
Eu acredito que a vida é feita de oportunidades. Minha mãe é empregada doméstica. Aí eu via os filhos dos patrões dela ganharem carro com 17 anos, com todas as oportunidades que a família deles dava e toda a estrutura a que eles tinham acesso, sem saber o que fazer para aproveitar isso. O cara entrava nas drogas e acabava assassinado. Vi muito isso, muita gente com toda a chance de evoluir na vida jogar tudo fora. Quando falo essa frase quero dizer que, mesmo sem as oportunidades iguais, ainda assim você pode ser melhor que o filho do patrão, que joga fora as chances que tem.

"Eu sei o valor de ter as coisas. O valor de uma roupa, de um tênis. Sei o valor de ter ou não ter. Quando você direciona essa energia consegue força para aproveitar as chances que você tem"

É aquela velha história: casa de ferreiro, espeto de pau... 
Tem um viés também de orgulho também. Eu tenho orgulho de onde eu vim. Tenho orgulho da minha origem. Muita gente tem tudo e não aproveita. Eu sei o valor de ter as coisas. O valor de uma roupa, de um tênis. Sei o valor de ter ou não ter. Quando você direciona essa energia consegue força para aproveitar as chances que você tem. É uma frase simples mas é uma questão profunda. Eu acho que, dentro desse contexto, é importante lembrar que a imensa maioria dos jovens negros tem uma origem muito parecida e tem que lutar contra essas condições inerentes a esse mundo. Com essa frase eu quero que as pessoas se identifiquem comigo.

E essa identificação é importante, especialmente no meio do rap...
Foi isso que o Blue me falou quando eu conheci ele e o Brown. Ele disse: "Toddy, na minha época, se tivesse um cara que nem você, que entende o que a gente está falando e o que a gente quer passar com o clipe, a gente teria feito muito mais clipe. A gente chamava os boys pra fazer o clipe pra gente e eles não conseguiam entender a nossa realidade, não entendiam o que a gente passava". E eu entendo o que ele queria dizer. Chega um cara que não sabe nada de Racionais e botava em pauta alguma coisa que ele viu na França, quando arte pros caras são as coisas feitas na comunidade aqui em São Paulo. Então com aquela frase eu também quero dizer isso. Quero que as pessoas saibam de onde eu vim e como eu sou. Meu trabalho tem a ver com black music e com os artistas negros. Então não quero e nem posso me separar disso. Eu quero ser mais e trabalho com pessoas que também querem ser mais.

"Se você vai nas comunidades carentes, vê que a maioria é negra. A gente está indo pra 2013 e quando você chega na favela encontra um quilombo. As pessoas vivem nessa situação até hoje porque a gente acredita nessa mentira de que tudo mudou"

Estamos no meio de uma discussão aparentemente sem fim sobre a legalidade das cotas raciais. Como você vê essa questão?
Sobre isso o que a gente mais ouve é contra-argumento. As pessoas que mais se pronunciam sobre isso, ou não são negras, ou não tem experiência para avaliar e entender o que aconteceu no passado. A gente está atrasado. Se você vai nas comunidades carentes, vê que a maioria é negra. A gente está indo pra 2013 e quando você chega na favela encontra um quilombo. As pessoas vivem nessa situação até hoje porque a gente acredita nessa mentira de que tudo mudou. Felizmente, os militantes das cotas raciais reconhecem esse cenário. Eu tento mostrar um pouco disso nos meus trabalhos. Na periferia as pessoas também querem crescer. 

Exatamente. O que é muito difícil de ver é alguém de fato defender a ação afirmativa como obrigação do Estado.
Concordo. O governo brasileiro tem, direta ou indiretamente, uma dívida com a comunidade negra. É uma dívida moral, financeira, real e impagável. As cotas são uma tentativa de pagamento dessa dívida. Não é uma coisa legal, mas a gente tem direito à toda a oportunidade possível. A minha avó, três gerações antes de mim, ainda vivia em regime de escravidão. Trabalhava em uma fazenda no interior de Minas, onde ela morava e não ganhava nada. Isso faz muito pouco tempo. E eu me considero uma exceção. O número de diretores negros fazendo o que eu faço é muito pequeno. E isso é anormal. Com tantos negros no Brasil, deveria haver mais. É claro que isso é uma análise prática. É isso que eu vejo nas favelas e nas comunidades. As pessoas que estão lá querem aprender, querem estudar e querem ganhar seu próprio dinheiro.

"O governo brasileiro tem, direta ou indiretamente, uma dívida com a comunidade negra. É uma dívida moral, financeira, real e impagável. As cotas são uma tentativa de pagamento dessa dívida." 

 

Veja abaixo alguns dos trabalhos de Toddy:

Cone Crew Diretoria - "Chama os Mulekes"

Projota - "Pode se envolver"

Projota + Rashid + Emicida - "Nova Ordem"

Karol Conká - "Gandaia"

Rashid - "Vou ser mais"

Vai lá: https://www.youtube.com/user/toddyone

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