Corpo estranho
Em 1977, João Nery foi pioneiro ao se tornar a primeira mulher do Brasil a mudar de sexo
Se Peter Drouyn, que você conheceu na reportagem "Transurfer", foi o primeiro transexual do surf, João W. Nery também é um pioneiro. Em 1977, tornou-se a primeira mulher do Brasil a mudar de sexo. Mais de 30 anos depois, ele conta como é a vida de quem é estrangeiro do próprio corpo
Eu devia ter uns 7, 8 anos. Tinha achado muito estranho aquele homem com várias cicatrizes no peito, amigo dos meus pais, que tentava puxar papo comigo na praia.
– Mãe, não gostei do João. Ele é esquisito.
Ela estava dirigindo o carro e desconversou, mas sabe como é: criança quando encasqueta com algo, encasqueta mesmo. E eu, sem imaginar a bomba que viria, insisti.
– Filho, o João nasceu mulher e virou homem.
Meu mundo caiu. Descobrir que a Vovó Mafalda era homem já havia sido traumático o suficiente. Eu havia conhecido um caso real, na minha frente, com a transformação marcada na pele e não por uma fantasia. Fiquei dias com aquilo na cabeça. Hoje, 15 anos depois, com os horizontes (espero) mais amplos, reencontro João em sua casa. Desta vez, sua figura me é completamente normal e a primeira impressão que tenho é que minha mãe estava enganada: João não nasceu mulher e quis virar homem. Nada disso. João nasceu homem, mas preso num corpo de mulher.
João foi o primeiro caso de transexualismo feminino a se ter notícia no Brasil, vindo a público em 1985, ano em que lançou o livro Erro de pessoa. Estamos falando aqui da minoria da minoria: um transexual que mudou seu corpo de mulher para homem – processo muito mais raro, complicado e precário do que o inverso. A cabeça já nasceu pronta, mas fisicamente falando Joana virou João W. Nery de vez aos 27 anos, em 1977, 20 anos antes de esse tipo de cirurgia ser legalizada no país.
Se fosse hoje, João não precisaria fazer tudo por baixo dos panos como fez. Poderia pagar cerca de R$10 mil e operar-se numa clínica particular, ou recorrer a um dos cinco hospitais universitários do país que operam pelo SUS (Sistema Único de Saúde), caso suportasse toda a burocracia e espera envolvida nessa opção (desde a implantação do programa, em 1998, pouco mais de 20 pacientes foram operados). Mas, de um jeito ou de outro, João continuaria sendo um criminoso.
O descompasso é tipicamente brasileiro: mudar o sexo do corpo é legal; do RG e demais documentos, não. Quem não tem o prestígio de uma Roberta Close tem que entrar na Justiça ou então fazer uma nova certidão de nascimento e, a partir dela, tirar novos documentos – é o que João fez, e o que o artigo 307 da Constituição considera crime de falsa identidade. Nosso “criminoso” nunca foi descoberto, mas para virar homem no papel também teve que matar Joana e enterrar com ela todas as suas conquistas, como o diploma de psicologia que nunca mais pôde usar.
“Monstruação”
João teve vários nomes durante a vida. O primeiro deles, Maria-João, ganhou na pracinha onde brincava, em frente à casa onde morava com os pais e as três irmãs, na zona sul do Rio de Janeiro. Ele não entendia, assim como não entendia por que não podia andar sem camisa como o pai. “Virar mocinha” soava como uma sentença de morte. Quando a “monstruação” veio, João não se permitia sentir cólica ou TPM, surrava os seios e forçava a corcunda para ver se escondia os “apêndices”. Era o começo de sua batalha contra o próprio corpo, travada até hoje.
Para não enlouquecer, descobriu que teria que mergulhar de cabeça em alguma coisa. E foi o que fez, literalmente, tornando-se campeão nacional de salto ornamental aos 16 anos. Os treinos constantes deixavam João com uma compleição mais masculina, e as 30 medalhas conquistadas trouxeram autoconfiança. Outro suporte veio dos papos que tinha com um amigo de seu pai, na época exilado político no Uruguai. Era o antropólogo Darcy Ribeiro, que, sem filhos, adotou o jovem em crise que frequentava sua casa para desabafar e fumar escondido. João considera Darcy seu mentor intelectual, quem lhe mostrou um jeito de habitar um mundo que não o compreendia: “Ou você fica rico para calar a boca das pessoas ou vira um intelectual”.
Como quase tudo na vida de João, namorar não era fácil. Primeiro, precisava certificar-se que a menina enxergava-o como homem, apesar do visual unissex não ajudar. Depois vinha a parte mais complicada: o sexo. A lua de mel com a primeira esposa foi um desastre. João ainda não havia descoberto as maravilhas que sua mão esquerda poderia fazer, principalmente se acompanhada de bastante imaginação da parte de ambos. Além disso, era preciso sempre explicar o modus operandi de seu corpo para a parceira. João não gostava que tocassem em seus seios ou sexo, pois isso o lembrava de sua condição non grata. “É preciso ser muito homem para chegar ao orgasmo só com a força da mente”, orgulha-se.
Zero pau
Assim que soube que um grupo de médicos em São Paulo estava operando transexuais, ainda em caráter experimental, João transformou isso em seu objetivo de vida: “Não tinha medo de porra nenhuma, só de morrer como mulher. Era enlouquecedor”. Antes, porém, teria que ser avaliado por um psicólogo e um psiquiatra por um ano, e sujeitar-se a uma batelada de exames. Tudo na surdina. A esposa da época, a segunda de João, deu força, enquanto a maioria da família insistia na tecla do “onde foi que eu errei?”.
João foi operado pelas mãos do Dr. Roberto Farina, renomado cirurgião plástico, que cinco anos antes havia transformado o primeiro homem em mulher do Brasil, sendo inclusive preso por lesões corporais por isso. O “pacote homem” incluía a retirada das mamas, útero (adeus, “monstruação”), um forte tratamento hormonal à base de testosterona e… é isso. Não, João não ganhou um pênis para chamar de seu. A verdade é que pouquíssimos transexuais femininos ganham um. “É muito sofrimento para pouco resultado.” Leia-se: uma prótese feia, que não ejacula, sem sensibilidade e que fica semiereta o tempo todo. Fora o pior dos castigos, que é deixar de alcançar o orgasmo.
Mas para João é com zero pau que se constrói um homem: “O que é ser macho? É ter peru, mijar em pé? Eu já era homem anos antes da cirurgia. Há uma série de gente que perde o pênis em acidentes, problemas circulatórios, mas ninguém fala. É difícil encontrar uma prótese normal, de pênis flácido, por exemplo. Como ir à praia? De barraca armada? Você só acha prótese rosa, amarela, com vibrador. Tudo que você não deseja num pau”.
Puberdade tardia
“A minha adolescência começou aos 30. Foi quando nasceu barba, pelos no corpo, espinhas na cara. Uma maravilha. Adorava ficar sem camisa, apesar das marcas.” João deixou de ser oficialmente um psicólogo, mas clinicou clandestinamente por um tempo. Depois, trabalhou numa construtora e comandou uma estamparia. Está há 13 anos no quarto e mais longo casamento. Tem um filho. Se orgulha de ter feito “um homem feminino, no melhor sentido. Um cara sensível, carinhoso e gentil”. Lamenta só não poder mais dançar, o uso da testosterona a longo prazo lhe rendeu uma artrose no fêmur e um pinçamento na coluna.
Aos 60 anos, João já existe há mais tempo que Joana. Dos que o conhecem há menos tempo, são poucos os que sabem do seu passado, incluindo a sogra. Sobre a mania que temos de reduzir as coisas, ele desabafa: “Você nasce e morre dentro de caixas. Caixa da família, da escola, do casamento e depois vai para o caixão. Ponha o pé para fora disso e você já é estigmatizado. Tem que ter muita estrutura para segurar a peteca da marginalidade”.
Arrependimento? “Nem por um segundo”, João responde antes mesmo de a pergunta terminar. Para ele, a escolha era tão óbvia quanto respirar. O problema foi convencer o resto do mundo disso.