Good cop
Conversamos com alguns policiais que plantam maconha e defendem uma regulamentação mais esclarecida em relação às drogas
Um discreto – e secreto – grupo de policiais tem levado a reflexão sobre a legalização das drogas a um ambiente onde ela não parecia bem-vinda. São policiais que cultivam Cannabis para uso próprio e também militam pelo direito ao autocultivo da erva . As justificativas deles são semelhantes às que fazem qualquer pessoa querer plantar: ter uma erva de melhor qualidade, parar de financiar o crime organizado ou melhorar a condição de vida de um filho doente.
No entanto, policiais que cultivam maconha não arriscam pouca coisa. O sonho da estabilidade no emprego e da aposentadoria integral é um dos principais motivadores para que tanta gente preste concursos para o funcionalismo público – e policial expulso de corporação perde o trabalho e o benefício, além de enfrentar sanções criminais e desmoralização.
Policial civil há 17 anos, “PC” só concordou em conversar sob a condição de que nem o estado em que trabalha fosse revelado. Praticante de esportes radicais nas horas vagas, o policial contou que é usuário desde a adolescência e cultiva desde 2011, influenciado por um amigo de infância. “Tive sorte de principiante”, lembrou, satisfeito com sua primeira colheita.
“É uma mudança muito grande de paradigma. Vêm os amigos, você acaba influenciando outras pessoas. Vira um ciclo muito legal...”, conta. Aos 41 anos, ele diz que já prestou consultoria a cultivadores e tem a intenção de se tornar um “grow planner” se o autocultivo for regulamentado no Brasil. Pensando nos negócios que a legalização pode gerar, já usou seus dotes de Professor Pardal para fabricar seus próprios equipamentos de cultivo indoor, os quais chegou a vender pela internet.
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PC se considera um ativista. “O policial tem um contato diferente com o crime gerado pelo proibicionismo. A coisa é pior do que parece. A proibição causa um dispêndio de dinheiro público muito grande, favorece a corrupção. O policial tem obrigação de plantar. Se eu comprar um prensado, estou financiando o crime.”
O policial rodoviário federal “PRF”, 37 anos, começou a cultivar quando entrou para corporação, em 2005. “Por uma questão de qualidade e porque você não consegue a maconha sem ter contato com a criminalidade. Dissociei meu consumo do crime organizado”, conta o policial da região metropolitana do Rio de Janeiro.
PRF não compra maconha há dez anos e, desde sua segunda colheita, não precisou mais do mercado ilegal. Em sua última safra, colheu as flores de 22 pés. “Mas já cheguei a ter mais de cem plantas.”
Adepto do cultivo indoor, PRF contou que sempre optou por sementes importadas da Europa, mas que já colheu fumo bom de sementes encontradas em maconha paraguaia prensada. O policial – que se diz favorável à legalização de todas as drogas – já publicou fotos de seus bons resultados on-line, em um fórum de ativistas do qual participou. “Sou a favor das liberdades individuais”, afirmou, defendendo ainda a liberação do porte de arma.
A lei manda o policial enquadrar o consumidor de maconha e o encaminhar à delegacia para ser processado. Porém, PRF conta que libera os usuários que encontra nos bloqueios dos quais participa periodicamente.
“Se vejo que é só um usuário tranquilo, não faço nada. Mas se vir que é um tráfico mais de crime organizado...”, disse, contando que prende sem dó quem julga ser traficante. “Tem pessoas que incorrem em crime e tem criminosos de carreira. Se eu perceber que há uma forma de lucrar com o crime...”
UMA NOVA VISÃO
Depois de ver sua filha portadora da síndrome de Rett, hoje com 6 anos, convulsionando por quatro horas seguidas, o policial militar “PM”, 28 anos, que trabalha na região serrana do Rio de Janeiro, soube por sua mulher que o extrato de Cannabis poderia ser usado para tratá-la. Aos poucos, sua impressão sobre a erva começou a mudar, principalmente depois que as convulsões de sua menina reduziram em 60% com o uso do óleo erval. Mais de dez anticonvulsivos já tinham sido testados anteriormente, sem sucesso.
Porém, a burocracia que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) exige para a importação do medicamento, associada a seu alto preço, fez com que sua filha ficasse sem o extrato. A mãe, de 24 anos, entrou em contato com cultivadores ativistas, que lhe forneceram um óleo mais fresco – que eliminou totalmente as convulsões. “Não era justo alguém se arriscar por nossa causa”, disse ela, contando que, por isso, resolveu cultivar.
Apesar da melhora da filha, PM não permitiu que sua mulher – hoje ex, por outro motivo – cultivasse maconha na casa da família. “Ele não era contra, só tinha medo do que poderia acontecer”, contou a jovem, que começou a cultivar a erva ao ar livre na chácara de sua mãe, na zona rural do município em que vive. De formação católica, o policial considerava a erva coisa do diabo. “Hoje ele até dá o remédio para ela. Mas só é a favor da maconha medicinal.”
A Associação dos Agentes da Lei Contra a Proibição (Leap Brasil) reúne atualmente cerca de 500 policiais, promotores e juízes brasileiros favoráveis à legalização das drogas. Diretor e cofundador da entidade internacional no país, o delegado Orlando Zaccone afirmou que os policiais que cultivam maconha correm um risco maior de “serem estigmatizados como traficantes” se forem flagrados.
“Existe uma linha muito tênue. Quando você pega um policial com uma quantidade de plantas que seriam para o seu consumo, mas que para uma autoridade desinformada pode caracterizar uma quantidade muito grande – as autoridades não têm esse conhecimento, de que, de repente, 50 pés de maconha podem ser suficientes para produzir uma quantidade para o consumo próprio –, eles podem ser identificados como traficantes”, disse o delegado, que integra o movimento Policiais Antifascismo.
Segundo Zaccone, o policial “traz o estigma criminal”. “Além do estigma do herói, utilizado pela direita para promover sacrifícios dos policiais para a manutenção de uma ordem socioeconômica, o policial também carrega o estigma do criminoso”, explica. “O policial identificado com o autocultivo corre um risco muito maior. É a mesma coisa que um cara provar na favela que ele é um autocultivador.
O cara foi encontrado com dez pés de maconha dentro de casa na Rocinha e vai ser autuado como usuário? Jamais! Então, o policial corre o mesmo risco. Os policiais ainda não observaram que eles sofrem estigmas muito semelhantes daqueles que são criminalizados. Esse discurso crítico deve ser apropriado também pelos policiais para que eles se defendam desses estigmas”, conclui.
Créditos
Imagem principal: Barbara Veiga