Controle ainda que tardio

Ricardo Guimarães: "ando impressionado com a arrogância com que temos usado a liberdade"

por Ricardo Guimarães em

 

Ando impressionado com a arrogância e a ignorância com que temos usado a liberdade que conquistamos. Tenho namorado a ideia de controle como maneira de nos proteger de nós mesmos

Caro Paulo,

Escrevo ainda sob o efeito da talvez mais pura experiência artística da minha vida: Keith Jarett ao piano, na Sala São Paulo. Ele improvisa. Isto é, ele não sabe o que vai acontecer a partir do momento em que seus dedos tocam o piano. De forma única e inédita, a música vai se desenvolvendo na medida em que ele vai tocando. Sua entrega à experiência é total, tão total que seu comportamento indica que ele não tem controle sobre suas mãos e seu corpo. Ele toca caminhando ritmado ao longo do teclado, bate os pés, se contorce, agacha-se de vez em quando como se estivesse procurando algumas teclas escondidas debaixo do piano, geme, solta uns gritos incontroláveis e a criação vai surgindo com uma beleza extraordinária a ponto de arrancar lágrimas involuntárias da plateia. Tiago, meu filho, ao meu lado comenta: “Pai, ele faz sexo com o piano!”. Penso comigo: isso é arte! Um exercício de controle e de entrega ao processo artístico que pode resultar tanto num grande fiasco como numa legítima obra de arte. O risco define o mérito da aventura. Bravo!

Nessa mesma noite, nesse mesmo espetáculo sublime, tivemos a experiência da vulgaridade e da falta de civilidade de uns idiotas presentes na plateia. Antes de começar foi pedido que não se fotografasse o artista. Os tais idiotas fotografaram. Ao fim, antes do bis, o artista repetiu o pedido para não ser fotografado. De novo os idiotas fotografaram, inclusive quando ele tocava o bis. Ao terminar, após os aplausos e novas fotos, ele falou: “Eu peço desculpas aos que não fotografaram, mas eu não vou tocar mais”. Isto é, alguns 20 idiotas prejudicaram 1.500 pessoas impedindo-as de usufruir mais um pouco de uma experiência única em suas vidas.

Eu queria viver num mundo livre. Lutei e luto por isso. Mas ando muito impressionado com a arrogância e a ignorância com que nós, os humanos, temos usado a liberdade e o poder que conquistamos. E tenho namorado a ideia de controle como uma maneira de nos proteger desse poder e dessa liberdade.

FECHA A TORNEIRA


Para não pesar falando de Bolsonaros, assassinos de Realengos, homens-bomba e pastores que chutam santas e queimam o Alcorão, vou pegar o idiota que usa sua liberdade para deixar a torneira aberta enquanto escova os dentes. Não importa se ele é ignorante ou inconsequente, o fato é que ele está prejudicando a sociedade e o nosso futuro. O que fazer?

Esperar que aprenda e amadureça, pondo em risco o projeto de vida e de sociedade que imaginamos? Ou obrigá-lo a instalar a torneira com um design lindo que a faz fechar 15 s
depois que é aberta? Sou a favor dessa interferência inteligente e bela na liberdade do idiota. E estou lançando um movimento a favor de uma sociedade com torneiras-que-fecham-sozinhas, antes que seja tarde.

Controle quae sera tamem. E tenho dito.

Abraço do amigo impaciente,

Ricardo

*RICARDO GUIMARÃES, 62, é presidente da Thymus Branding, Seu e-mail é ricardoguimaraes@thymus.com.br e seu Twitter é twitter.com/ricardo_thymus

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