Conto verídico

por Luiz Alberto Mendes em

ULTRAPASSAGEM

 

Quando as balas cortavam os carros ao meu redor como manteiga, eram a mim que elas procuravam. Foi um espanto constatar. As minhas haviam acabado; não podia prever aquele cerco. Encolhi, tentando entrar para dentro de meus ossos. Mas então senti algo quente escorrendo pelas pernas. O tênis se liquefez, encharcado. Parte da mão direita parecia estraçalhada e pulsava. O sangue escorria grosso. Do alto das nádegas, uma ardência se aprofundava corpo adentro.

Estava baleado e, de repente, senti que morreria. Eles se aproximavam atirando para todos os lados. Não havia como evitar. Nada doía ainda. Tudo era adrenalina a envenenar o sangue que me escapava. Finalmente, me matariam.

Não sei de onde, uma indignação subiu com gosto de vomito. Uma coragem súbita me tomou. Haviam sacrificado minha existência desde a infância. Agora estavam me matando como a um cão sem dono.

“Eles” agora eram meu pai. Os comissários de menores e os policiais que me barbarizaram no Juizado de Menores (antiga FEBEM e hoje Fundação CASA). Os tiras das delegacias e do DEIC que me torturaram desde adolescente. Guardas de presídio que sacanearam, humilharam e espancaram por décadas. Diretores de cadeia com suas leis regidas a canos de ferro e cela forte. O mundo todo contra mim naquele e em todos os instantes de minha existência. Não, não dava para lembrar nos que favoreceram, apoiaram e amaram. Pelo menos não naquele momento enquanto morria.

Quis olhar firme e de frente aos que me matavam. Receber aquelas balas todas no meio do peito e ainda andar até “eles”. Ao tempo em que me perguntava de onde provinha aquela coragem, aquela determinação. Sentia estar enxertado de uma vida maior que minha morte. Fluía dentro de mim a paz de todos aqueles que morreram como eu estava morrendo. Nenhuma inquietação. As balas, o fim de toda aquela angústia e ansiedade que sempre me permeou, atraiam.

Parecia estar nas entranhas de um cão que latia. Não sabia o que me sustentava e já não morreria como a pedra que tomba. Estava conquistando para mim o que sempre quisera ser. A nobreza e elegância que ninguém mais podia interromper. Joguei a arma, renunciando a qualquer atitude de autodefesa. Com imensa dificuldade, me coloquei em pé. Aquela era a minha primeira decisão verdadeira. Nascera dentro de mim. Não era apenas mais uma conseqüência gerada por outras conseqüências.

Algo excedia a cada gesto, era um tempo longo como muitas vidas. Não havia sofrimento. Alívio e paz me moviam para frente, já tombando. Imagino que os policiais se assustaram. No mínimo era inusitado. Apenas um deles correu até a mim. Acabou de derrubar, virou de bruços e algemou mais rápido que se pudesse pensar.

A vida havia sido reencontrada. Após a aceitação da morte, tudo podia ser maravilhoso novamente, mesmo no inferno da prisão em que seria jogado. Mesmo muito ferido, o momento era dourado. Escolhera e encontrara a coragem de viver, estranhamente, na frente daqueles que me matavam. Eu me ultrapassara. Havia em mim, um sentido de existir. Sim, ainda era possível viver.

Admirei e amei a mim mesmo, pela primeira vez na vida, em meio à chuva de coronhadas e pontapés que me cobriam os “valentes” policiais.

Composto por Luiz Mendes em 24/11/2005.  

 

 

Arquivado em: Trip