Conto de Brinquedo
LIÇÃO
Lá vinha Carlinhos subindo a ladeira, saltitante, chutando tudo que não lhe machucasse o pé. Sua vida brilha na ponta de seus olhos redondos. Esta feliz, a escola acabava de liberá-lo para a alegria das ruas, dos carros, gentes e... sua ansiosa vontade de jogar bola.
Já, ao colocar o pé fora da classe, esqueceu tudo o que a professorinha lhes ensinara. Atropelou os meninos menores em sua ânsia de abandonar a escola e chegar ao campinho.
Outras eram suas preocupações, ao assistir as aulas. Tinham mais a ver com o que havia de tão misterioso em baixo da saia da professora e se haveria bola para jogar lá no campinho. Seu coração ameaçava explodir em flores e alegria; desatou a correr na busca louca de chegar nem sabia onde.
Meninos pobres da periferia da cidade grande, apaixonados por futebol, faziam de tudo para ao possuírem uma bola. Carretos nas feiras, entregas, limpezas, encerar a casa para a mãe, cortar gramas, contra a vontade e empatando o tempo precioso da diversão.
O problema é que a bola havia furado no dia anterior. Eles não tinham como conseguir outra de imediato. Cada qual comprometera-se a procurar seus meios, mas seria difícil. O problema era da mais alta gravidade. A preocupação enchia suas pequenas vidas de ansiedade.
Chuta uma pedra tentando tabelá-la com o muro de uma casa. Quando corre para completar a jogada, observa, assim de relance, no quintal da casa, uma bola de couro novinha, quase cintilante. Tudo o que o separava dela era um portão de grades de ferro fechado. Recebeu a pedra ainda no ar e mandou-a longe com um tiro certeiro de esquerda.
Mas e a bola? Voltou, namorou, e sem pensar muito, decidiu-se. Abriu o trinco do portão e adentrou ao quintal. Num átimo de segundo já estava fora. Correu feito louco, ladeira acima, com a bola mal escondida debaixo da blusa de lã, parecendo grávido.
Bem, mas e agora? Em casa não poderia chegar com a bola. Os seus pais iriam querer saber onde ele a conseguira. Evidentemente, não havia explicações. Deixou-a escondida no terreno baldio ao lado de sua casa e entrou.
Seus dois irmãozinhos vieram correndo em sua direção. Era o mais velho e herói para os meninos. Eles o adoravam. Como um rei, ele dispersava a euforia das crianças puxando cabelos de um e dando piparotes na orelha do outro. Eles correm, brincando, para a cozinha que significava comida e mãe. Cheiro gostoso de bolo de fubá assado saindo do forno.
Rodeiam a mãe puxando sua longa saia. Ela ralha entre aborrecida e alegre por tê-los ali, seguros, com ela. Carlinhos pede autorização para ir jogar bola. A mãe autoriza, mas dá um prazo: até a hora do almoço. Os menores querem acompanhá-lo. São muito pequenos e só servem para atrapalhar. A mãe, num olhar compreende o filho mais velho, e não permite.
Com as asas do dia soltas, ele chega ao campinho e se encontra com a molecada da vizinhança. Todos o rodeiam: que bola bonita! Explica que é sua e que achou na rua. Ele sabe que cometeu erro grave. A consciência pegava quando lembrava do pai. Mas logo pensa, ninguém vai descobrir. Como, se só ele sabe? Não poder mostrar sua bola nova para o pai, empana um pouco o brilho de sua alegria em possuí-la.
Foi por isso que quando Brisa, seu amiguinho, lhe fez uma proposta de troca, ele aceitou logo. A bola por uma caixa de brinquedos com cinco jogos. Poderia levar para casa para brincar com o pai e os irmãozinhos. Brisa havia ganhado numa banca de jornal, como prêmio de uma "furadinha".
Não gostava de mentir ao pai. Mas aquele era um caso de necessidade. Racionalizava, não era bem uma mentira, seria apenas uma meia-verdade. Diria que ganhara o prêmio na banca, como acontecera de fato, só que com Brisa. Era quase verdade e justificava no momento. Depois, bem, já era outro tempo, outro século.
O pai interessou-se em brincar com os filhos. Nunca pudera comprar um brinquedo daqueles para os meninos, e Carlinhos conseguira com uma "furada" apenas. Êta menino de sorte! E era um bom menino. Podia se confiar nele. Sempre pensava em seus irmãozinhos. Tanto que em vez da bola que gostava tanto de jogar, escolhera os jogos para todos brincarem em casa.
Mas, e sempre há um mas, como dizem, o crime não compensa. Surgiu um problema. O jogo de dominó faltava duas peças. O pai já deduziu que o jornaleiro devia ter ludibriado o garoto. Aproveitando-se de sua inocência, premiara-o com um jogo defeituoso.
Ah! Mas aquilo não ia ficar assim! Eles iriam imediatamente à banca de jornal exigir a troca por um jogo completo. Carlinhos, já sentindo a casa cair sobre sua cabeça, pediu para o pai deixar para lá. Não havia problemas de faltar duas peças. Jogariam sem elas. Tentava mostra ao pai com organizar o impossível jogo daquele jeito mesmo.
O pai, preocupado com a humildade excessiva de seu filho, julgou necessário ensinar-lhe a exigir o que lhe era de direito. O menino precisava aprender a lutar pelo que lhe pertencia.
E lá saíram os dois, em direção à banca. Carlinhos tremia e gaguejava. A vida lhe pareceu curta, a poucos metros do fim. Tudo flutuava no ar, enquanto o pai o levava pela mão.
No meio do caminho não suportou mais a pressão. Chamou o pai de lado e contou-lhe o que acontecera. Claro, omitindo o roubo. A bola encontrara na rua. Jogada entre a guia e a calçada. Porque mentira? Porque pensava que não seria acreditado, caso dissesse a verdade. O que o pai faria? Desconfiado, exigia que fizessem todo o percurso da troca e depois no local onde "achara" a bola.
Destrocaram o jogo, para grande vergonha de Carlinhos junto de seus amiguinhos, e partiram em direção ao local do crime. Na porta onde a bola fora furtada, indicou a calçada e guia onde "encontrara" a bola. O pai quis ir até o fim da história e bateu palmas no portão da casa. Uma senhora os atende, ladeada de duas crianças.
Sim, aquela bola era mesmo dali. O dono, uma das crianças, por trás de suas saias, bate reconhecimento na hora e já a quer. O pai expõe o que o filho lhe contara. A senhora olha naqueles olhinhos arregalados, cheios de medo, e sente todo o peso da situação. Sorri e agradece. De certo um de seus meninos deixou-a cair na rua e esqueceu de recolhê-la. Ele sentiu vontade de abraçar o sol com os olhos. Profundo alívio lhe esvazia os pulmões.
E lá vão pai e filho para casa. O primeiro satisfeito pela honestidade de seu filho e com a lição que lhe dera. O segundo tranqüilizado e por dentro, agradecendo fervorosamente a generosidade da mulher que o livrara de sérios embaraços.
E diz o pai que, se o filho houvesse lhe contado a verdade, poderia ter ficado com o jogo, porque o achado não é roubado.
Composto por Luiz Alberto Mendes em 05\07\2001.