Festa no apê
Bem-vindo ao mundo dos Souza, dez irmãos que moram num apê de 54 m² no centro de São Paulo. Eles são donos de uma construtora – a Construsouza – e levantam prédio inteiros no braço
Seis homens e quatro mulheres que se espremem entre sala, dois quartos com um beliche e um triliche, cozinha e o único banheiro da casa. A irmã mais jovem, quase adolescente, tem 19 anos; o mais velho tem o dobro. Vieram da roça, da zona rural de Braúna, a 520 quilômetros de São Paulo. Braúna, ainda hoje, tem pouco mais de 4000 habitantes e a área rural segue sem luz, tampouco telefone.
Por lá, pouca coisa mudou desde que um de seus habitantes deixou a cidade, 16 anos atrás, para fazer a cidade grande. Por aqui, a cidade grande mudou completamente a vida de alguns de seus antigos habitantes, os irmãos Pereira Souza. Paulo foi o responsável. Saiu de Braúna aos 21 anos para morar com um tio, pedreiro, em Guarulhos. Em dois anos, ele aprendeu a colocar revestimento, a levantar parede, a fazer pintura. “Descobri, rápido, que amava este serviço”, conta. A qualidade do trabalho, diz ele, fez com que um médico, judeu, que morava na capital, o convidasse a se mudar para um quarto e banheiro, na capital paulista mesmo, no último andar de um prédio do qual ele era dono. “Disse que não ia faltar obra para mim na família dele”, lembra.
De fato. Foi tanto serviço que Paulo começou a chamar os irmãos, que tinham ficado na roça, para morar e trabalhar com ele. Veio João, veio Joaquim, veio José, Pedro e até Luzia. Paulo ensinou um por um. Depois da reforma, que eles mesmos fizeram, os seis passaram a dividir 45 metros quadrados. Passavam um baita aperto. De espaço, não de dinheiro. No ano em que João se juntou a Paulo, eles trabalharam tanto que folgaram apenas seis dos 365 dias: “Só paramos na Sexta Santa, no Natal e no dia de Nossa Senhora Aparecida”, conta João, o único que ainda freqüenta missas semanalmente. Tanto trabalho rendeu reservas para que comprassem um trator de 7500 reais, um presente para o pai.
Antes de ingressarem no ramo da construção, ainda em Braúna, todos eles trabalhavam com agricultura e eram obrigados a fazer uso de financiamentos no banco para viverem. Hoje, mais de 200 obras depois, os irmãos sanaram dívidas e já investiram em seis terrenos em Arujá, cidade próxima a Guarulhos, onde construíram seis casas, agora alugadas. Em São Paulo, têm dois apartamentos e estão adquirindo o terceiro, de 64 metros quadrados, para o qual pretendem se mudar em alguns meses. O primeiro deles, em que moram, foi comprado há seis anos, quando o “médico-padrinho” faleceu.
Em 2002, encontraram mais uma fonte de renda: a compra de imóveis a baixo custo e revenda deles reformados, o que lhes garante cerca de 15% de lucro sobre o valor da propriedade. Com disciplina, compraram dois carros (uma S10 e um Gol), em que os dez se apertam para visitar os pais, a cada três meses. Fazer dinheiro para um caixa coletivo e conviver tão de perto só foi (e ainda é) possível porque os irmãos são regrados até a última gota.
Fila do banho
Ali ninguém fuma, ninguém bebe, ninguém rói unhas. Televisão, só à noite – mesmo nos fins de semana. Ninguém fala “nome feio”, como eles dizem, ninguém se intromete na vida do outro e não há gritos. “A mãe nunca deixou gritar, nem na hora de jogar truco”, lembra Luci. Até para usar o banheiro existe um sistema. De manhã, antes de ir ao trabalho, cada um acorda, toma banho por alguns minutos e avisa o próximo da lista (que toda noite é refeita, de acordo com as necessidades das obras). Aquele famoso “só mais cinco minutinhos” na cama nem pensar.
Depois do trabalho, a regra é outra. Quem chega primeiro prepara a comida de todos, que serve de jantar e também de recheio da marmita do almoço do dia seguinte. Come-se muito, por ali. A panela, de 40 centímetros de diâmetro, cozinha diariamente nove copos cheios de arroz. “Um pacote de cinco quilos dura três dias”, diz Luzia, a mais prendada no fogão. Mas, se o prato deles é de pedreiro, o resto todo escapa dos estereótipos do profissional das obras. “O perfil convencional de quem trabalha em obras a gente conhece. É aquele que diz que tem que beber umas pingas para matar o pó da garganta... A maioria chega bêbada na obra e nem leva ferramentas”, critica Joaquim, que calcula que a família, junta, deva ter mais de 200 ferramentas. A postura séria e comprometida eles aprenderam com os pais, mas o pulo-do-gato foi a influência do médico que os hospedou e empregou. “Ele dizia que se a gente quisesse ser bom tinha que estudar muito e se especializar”, lembra Paulo. E nisso a família investiu.
Dos dez, quatro estudam na Escola Técnica Federal de São Paulo e outros quatro cursam faculdade. Joaquim e José estudam engenharia civil e também fizeram cursos no Senai. Hoje cada um tem uma especialidade. José é o homem da hidráulica. João sabe tudo de pintura. Luciano e Luiz se especializaram em elétrica. Paulo é o mestre-de-obras. As mulheres dão suporte para eles em casa, também estudam e trabalham fora. E Joaquim cuida da burocracia.
É ele quem visita a obra para fazer uma avaliação do serviço, faz os desenhos em perspectiva na prancheta e, horas mais tarde, manda o orçamento por e-mail ao potencial cliente. Mostrando sorriso com dentes alinhados e muito brancos, falando manso e baixinho, Joaquim tem um misto de olhar seguro com um timbre de voz de timidez. Características que os outros irmãos, todos sorridentes, também conservam. “A gente tem a energia da mãe e a tranqüilidade do pai”, avalia Paulo, que gosta de trabalhar – de estudar, não. Por sorte, era talentoso e intuitivo o suficiente para driblar a falta de gosto pelos livros e dar certo na vida. O mais falante da turma, Paulo já realizou o sonho que o motivou a sair de Braúna. “Ajudamos meus pais e, depois de um tempo, comprar terreno ficou tão fácil que dava para ter mais um a cada três meses”, diz. Hoje, eles alimentam dois novos sonhos. O primeiro é fazer crescer a Construsouza, empresa que montaram há dois anos, para que esta se transforme em uma empreiteira. “Precisamos de uns 300 mil reais de capital de giro, que devemos conseguir totalizar em dois anos”, projeta Joaquim. Indagados se já têm essa quantia em patrimônio, muitos riem, outros olham para o chão e Joaquim responde: “É, mas a gente tem que ter segurança, não vai mexer no patrimônio”.
O segundo sonho também é comum a todos. “Ah, todo mundo aqui quer casar e ter filhos”, revela João. Dos outros quatro irmãos que não moram com eles, três são casados e uma mora sozinha, em Penápolis, próxima aos pais. Dentre os dez que vivem colados, só Paulo namora, há pouco mais de um ano, e planeja se casar em breve. A dificuldade para namorar sério, Luzia explica: “Você conhece um rapaz, começa a namorar. Quando conta para ele que mora com seis irmãos homens, ele até passa na porta do prédio, mas não sobe mesmo. Se insistir para ele subir, ele desaparece”, conta. “Eu costumo dizer que se subir é porque quer casar. Se tiver coragem de subir, é esse”, brinca Paulo.
E se todo mundo realizar o sonho de casar, estará finda a união dos irmãos? Cada um tomará seu rumo sozinho? Os Souzas juram que não. Tanto assim que já pensaram em soluções para não se separar. Anos atrás, chegaram a abrir uma conta no banco para juntar fundos para construir um prédio, de 14 andares, em que morariam todos os irmãos, cada qual em um andar. “Bom... mas ia morar todo mundo junto no primeiro andar até que casasse”, conta Luci. Adiaram o projeto porque resolveram aplicar o dinheiro em outros negócios, mais lucrativos. Mas o sonho segue, como diz Joaquim: “A gente vai manter nossa família sempre trabalhando unida, seja como for. Se der para morar junto, em um prédio que a gente mesmo erga, com nosso trabalho, ainda melhor”.
Vai lá: Problemas no apê? Chama a Construsouza. O tel. dos irmãos é (11) 3120-6260
Créditos
Imagem principal: Guilherme Young