Conservado em álcool
Miéle tornou-se uma figura essencial para a preservação do bom humor e da cultura pop
Pleno fim de tarde de um sábado de sol e Luiz Carlos Miéle está impecavelmente vestido de smoking e gravata-borboleta, sapato brilhante, chapéu de palha na mão. É seu visual mais famoso, reminiscente de antigos musicais americanos, sutilmente adaptado à malandragem brasileira. Batendo levemente o pé no chão em movimentos elementares de sapateado, ele aguarda o sinal do fotógrafo avisando que vai bater nova chapa. De repente, na hora certa, entrega um sorriso exato e poses ensaiadas, com perfeita naturalidade. Miéle conhece os passos de dança do pop.
Pela sua casa no bairro carioca de São Conrado, nas paredes, em mesas, sobre estantes, há todo tipo de coisa: uma Marilyn de Andy Warhol, uma espada samurai, um espelho no qual está escrito “happy birthday” com batom, elefantes de porcelana, um gato persa chamado Garfield, cachorros, montes de fotos que parecem não ser olhadas há tempo, com Miéle ao lado de Liza Minnelli, Pelé e dezenas de pessoas com pinta de importantes. E o melhor de tudo: ao lado da piscina, no deck de madeira, uma estátua dele mesmo em pose bon-vivant.
Mementos de 70 anos e quatro meses de uma vida bem vivida; espetáculos, programas, noites, amigos, mulheres, drinques e histórias uma após a outra. Miéle é figura em extinção, daquelas essenciais para a existência da boemia, do bom humor, da cultura pop brasileira, da qual é espécie de sobrevivente. O que faz de Miéle, quase seis décadas de vida profissional, uma figura que vive até hoje no imaginário popular?
“Recentemente fui a um evento e encontrei vários amigos de outros tempos. Muitos sentadinhos, de bengala, a perigo. E vi dois ou três bandidos em plena forma! Então me convenci de que o pecado favorece a preservação da juventude.”
Ele está brincando, mas não muito: Miéle sempre foi um vigoroso adepto de uma boa dose de irresponsabilidade – ou pelo menos uma saudável anarquia. Há alguns anos, caiu da varanda de sua casa. Cinco metros de altura, hospital, pontos na cabeça, rótula fraturada. Lição aprendida? Uísque faz mal à rótula. Miéle achou o segredo do sucesso e a fonte da juventude: dar certo é importante, mas essencial é se divertir.
E ele se divertiu. Homem da noite, humorista, contador de histórias, diretor de espetáculos e de programas de TV e, até, cantor e ator. Reuniões? As melhores conversas aconteceram em madrugadas. Escritório? As melhores idéias vieram nas mesas do bar. Profissionais? Os melhores trabalhos foram feitos com amigos – que, não coincidentemente, eram os melhores profissionais disponíveis.
Na hora certa
O talento de Miéle de viver o momento certo na hora certa, e melhorar o momento um pouquinho mais, começou em casa, filho que era de uma cantora e atriz da rádio Excelsior, em São Paulo. “Foi tudo meio acidental”, vaga ele pelas memórias. “Eu era péssimo aluno e minha mãe queria que eu fizesse algo. Um dia, ela me levou pra participar de um programa na rádio, porque o garoto que ia fazer o papel medrou. Eu tinha 11 pra 12 anos e era cara-de-pau, já era engraçado ou pretendia ser. Depois minha mãe foi contratada pela rádio Tupi e me levou junto e aí chegou a televisão.”
“Gosto de lembrar de tudo que já fiz, mas faço questão de falar sobre tudo que ainda vou fazer. Isso é rejuvenescedor”
Naquele novo formato de linguagem que era a TV, foi fazendo de tudo: assistente, locutor, diretor. “Não havia escola, ninguém abriu um livro pra ler como é que faz. Ninguém aprendeu televisão no Brasil a não ser fazendo”, diz.
Numa dessas, conheceu Ronaldo Bôscoli, figura-chave da bossa nova. “Eu trabalhava na TV Continental e o chamei pra primeira entrevista com o pessoal da bossa que houve na TV”, conta Miéle, orgulhoso. “Depois ele me chamou pra ajudar em um dos primeiros shows de bossa nova, a Noite do Amor, do Sorriso e da Flor. Mas eu não cheguei a tempo de dar a força, só fui lá e entrei no meio pra assistir.”
Entre um primo diretor de teatro que o viciou em cinema, uma prima jornalista que o viciou em jazz e o intensivo de bossa nova de Bôscoli, Miéle descobriu mais uma vocação: diretor de programas musicais na TV e de espetáculos na noite. Ele conta: “Um dia eu e o Ronaldo fomos parar no Beco das Garrafas, onde tocavam os principais músicos, pra dirigir o primeiro show da vida da gente, que era o Sergio Mendes”.
Do Beco, foram subindo as apostas e os ganhos acompanharam: em pouco tempo dirigiam espetáculos dos maiores pop stars brasileiros, de Roberto Carlos a Elis Regina e Wilson Simonal. Na televisão, criavam programas de arte, inspirados nos melhores filmes americanos. “O que eu via no cinema tentava aplicar na TV”, contextualiza. “Quando comecei a dirigir, tentei contar histórias com a câmera, e acho que consegui. Eu e o Bôscoli fizemos programas muito diferenciados pra época, muitas vezes ganhamos prêmios. Éramos considerados os garotos espertos com umas idéias novas. A gente se divertia muito.”
O peidador
Quando abriu, na década de 70, no Rio, uma casa noturna com Bôscoli, o nome sugerido por Nelson Motta foi alegre e empolgadamente aceito: Monsieur Pujol. Homenagem ao artista francês de fins do século 19 que, conta a lenda, fazia grandes performances no palco utilizando-se de seu principal instrumento: o fiofó. Sempre de calça com um furo nos fundilhos, expelindo gases que nasceram para o sucesso, Pujol interpretava músicas, fazia imitações, levava o público ao delírio.
Boa metáfora para a produção da dupla Miéle & Bôscoli: sempre havia quem achasse genial, sempre havia quem se sentisse ofendido, mas ninguém nunca duvidou da ousadia, criatividade e facilidade para atrair as atenções. Juntos, Miéle & Bôscoli vestiram Roberto Carlos de palhaço, fizeram Elis Regina sapatear, assustaram a tradição com programas de TV modernistas, colocaram em movimento alguns dos maiores músicos de seu tempo, ajudaram a inventar a noite brasileira e o formato dos grandes espetáculos musicais como os conhecemos hoje.
Mas, antes, tiveram que se virar nos 30: “Os primeiros shows no Beco das Garrafas, para 50 ou 60 pessoas, nós iluminávamos com lâmpada de 100 velas. Fazíamos um tubo de luz com uma cartolina e colocávamos o interruptor em uma caixa de sapatos. Se o artista se mexesse muito, a gente iluminava com uma lanterna. Em um show do Simonal com a Darlene Glória, eu coloquei uma cadeira de juiz de tênis num canto pra ela sentar em uma cena. Como a gente fazia espetáculo naquela época com prego e cartolina? Tinha que fazer”.
Como todo mundo sabe, o perrengue é o melhor amigo da criatividade. Quarenta anos depois, temos sound designers, light designers, roadies, técnicos de som vindos do Japão e toalhas brancas a granel. Miéle foi vivendo as mudanças: dos 50 lugares do Beco aos milhares nas grandes casas; de novatos a estrelas; do 78 rotações pro LP, do LP pro CD, a morte do CD.
“Um dia quis comprar um disco do Frank Sinatra e fui à Hi-Fi da rua Augusta, que era uma loja importante”, exemplifica com mais um causo. “Quando eu disse que queria ver uns discos do Sinatra, o vendedor fez uma cara de dó pra mim, como quem diz: ‘Coitado, ele ainda não sabe o que aconteceu’. Eu fiquei puto com o desdém do cara, ‘vai dizer que não existe mais disco do Frank Sinatra?’. E ele explicou: ‘Não, Miéle, é que não existe mais disco’. Saí de São Paulo pra fazer show numa sexta-feira, na segunda não tinha mais vinil. Impressionante a mudança das coisas, acho curioso passar por isso por causa da minha idade.”
Em algumas horas de papo, é o terceiro ou quarto comentário sobre idade. Então, depois de tanta história, insisto no assunto: “O que o mantém aqui até hoje?”. “Gosto de lembrar de tudo que já fiz, mas faço questão de sempre falar sobre o que ainda vou fazer”, dá a letra. “Isso é rejuvenescedor, uma forma de não me entregar à idade. Quero saber o que vou fazer daqui pra frente.”
Entre planos de atuar mais (novos episódios da série Mandrake, em que ele fez parte do elenco, começam a ser filmados no ano que vem) e fazer mais shows (com Roberto Menescal e Wanda Sá, com Simoninha e participando do cruzeiro de Roberto Carlos), ele fala ainda em reinaugurar o Beco das Garrafas, criar novas séries na TV e organizar nova montagem da Sinfonia do Rio de Janeiro, de Tom Jobim e Billy Blanco.
Agora, tanto já feito e por fazer, do que mais se orgulha em tudo o que fez? “Provavelmente de não ter feito muitos inimigos”, sem hesitar. “A amizade parece um animal em extinção no mundo de hoje.”
E aí, enquanto educadamente põe jornalista e gravador pra fora, ainda comenta: “Pena que tenho jantar marcado para hoje à noite, senão abriríamos uma garrafa e continuaríamos o papo”. Naturalmente, estava apenas sendo educado. Mas, enquanto ainda penso em descobrir o segredo de tanto tempo fazendo coisas divertidas ao lado de gente legal, me pego pensando: pena mesmo.