Conhece o Marcio?
Marcio Freire: um dos mad dogs que mudou o surf de ondas grandes dropando Jaws no braço
Ele se tornou um dos maiores big riders do mundo, um dos três “mad dogs” que mudaram o esporte ao droparem as ondas gigantes de Jaws no braço. Marcio Freire trabalha na cozinha de um restaurante no Havaí, longe dos holofotes da mídia do surf. E vai muito bem, obrigado
Humilde? De fato, o baiano Marcio Freire não é um homem de luxos. Casa modesta, finanças modestíssimas. Trabalha de ajudante de cozinha e busca uma renda extra recolhendo recicláveis pela ilha de Maui. Há 14 anos longe da família, sem condições de visitá-los em Salvador, aos 36 anos é um homem feliz. Tranquilo com o passado, realizado no presente, planos simples para o futuro. Mas como chamar de humilde, exatamente, alguém que decide encarar sozinho, só com braço e prancha, montanhas de água despencando com mais de 20 pés? Como entender a modéstia de alguém que resolve descer as maiores ondas do Havaí, tão grandes que nunca haviam sido surfadas assim, só no braço? A resposta é simples: porque Marcio Freire, humilde que é, ao voltar para a terra firme não está muito preocupado em mostrar pro mundo o que fez. Por isso mesmo ele é o maior big rider sem fama do mundo.
“Não procuro divulgar muito o que faço. Claro que seria legal ir para a capa de uma revista, maior honra. Mas meu foco mesmo é o surf”, ele simplifica, antes de contar como começou sua carreira: “Desde que peguei onda pela primeira vez tenho um vínculo sagrado com elas”. Chorava quando os pais não podiam levá-lo a Itaparica nos finais de semana. Começou a ir mal na escola depois que descobriu como ir à praia sozinho. E, a única vez que contou com patrocínios na vida, foi ainda bem jovem, quando correu o circuito amador. “Saía uma foto minha no jornal, eu recortava e ia atrás de alguma marca, alguma empresa pra me patrocinar.” Foi nesses tempos que conheceu outros dois talentos baianos de sua geração. Yuri Soledade e Danilo Couto. E, desde então, essa amizade mudou não só a vida deles, mas a história do surf mundial.
Em 1994, na época em que Marcio estava na faculdade de ciências médicas, e sem patrocínio para correr o circuito profissional, Yuri ganhou um campeonato e, como prêmio, uma passagem para o Havaí. Foi direto para Maui. “Quando cheguei já vi que iria ficar pelo menos um ano, não dava para ir embora.” Doze meses depois, casou-se lá mesmo no Havaí, conseguiu um Green Card e voltou para visitar o Brasil. Uma de suas tarefas foi fazer a cabeça de Danilo e Marcio. Eles tinham que ir ao Havaí conhecer as ondas grandes de verdade.
Danilo foi antes. Marcio seguiu depois. Largou o trabalho que tinha no hospital, explicou à família que iria melhorar no surf e aprender inglês e, em 1998, mudou-se para o North Shore de Oahu. “Quando vim para o Havaí me desliguei por completo de competição. Na hora vi que seria free surfer, trabalhar só para pagar as contas, me autopatrocinar e ir atrás das ondas grandes.” E logo os amigos da Bahia, Marcio, Yuri e Danilo, começaram a desenvolver a técnica, explorar o Havaí e encarar ondas cada vez maiores. Mas a primeira vez que Marcio pegou uma realmente gigante foi quatro anos depois de sua chegada, em 2002. “Em Waimea. O Danilo entrou primeiro, e quase morreu no mar. O dia estava cabuloso mesmo. Fiquei observando umas sete séries, só analisando, até que entrei e consegui pegar duas ondas monstruosas.” Ali foi fisgado de vez... “Era tudo o que eu sonhava mesmo... Era como se eu não precisasse de mais nada.”
Mercado de peixe
Desde que os três amigos se mudaram para o Havaí, muita coisa aconteceu. Yuri, lá em 1995, começou a trabalhar lavando pratos no restaurante Fish Market, na vila perto da praia de Hookipa. Em 2000 já era sócio do restaurante que toca até hoje. Danilo casou-se, teve filhos por lá. Marcio segue solteiro e hoje trabalha no mesmo Fish Market como ajudante na cozinha. Em comum entre os três, o mais importante: estão em um seletíssimo grupo de big riders capazes de descer no braço as ondas realmente grandes em Jaws. E, mais do que isso, foram os três baianos que, no mesmo dia, desbravaram essa nova fronteira do surf.
Foi em 14 de março de 2007. Marcio nem planejava aquela sessão. Estava indo com um amigo checar o swell em Hookipa, quando recebeu uma ligação de Yuri e Danilo. Estavam indo para Jaws. Naquele dia, o mar estava grande de verdade. De 18 a 20 pés. Ondas que nunca haviam sido desafiadas sem o reboque de um jet ski. Danilo entrou primeiro. Desceu duas. Yuri, em seguida. Marcio foi o último.
Yuri Soledade recorda, “de nós três, Marcio foi o último a entrar naquele dia. Mas ele sempre foi o que mais abraçou a causa da remada. Até por não ter feito muito tow-in nem ter acesso a um jet ski. Então, todo dia que dava onda, ele simplesmente entrava no braço. Aos poucos a gente foi puxando esses limites... e, naquele dia, deu no que deu”.
Mesmo sendo da elite do surf de ondas grandes, Marcio ainda trabalha como ajudante de cozinha no restaurante de seu amigo de longa data, um dos três mad dogs, Yuri Soledade
Humildes, olha só, não pensaram em levar fotógrafos ou cinegrafistas. Mas por sorte alguém clicou aquelas inéditas performances. E as fotos começaram a circular. E, por algum tempo, só aqueles três seguiram sem tow-in em Jaws. “A gente tentando surfar, e os caras desciam puxados pelo jet ski na nossa frente, atrapalhando, falando que não dava, chamando a gente de maluco. Mas, depois que a gente mostrou que é possível, hoje os mesmos caras estão lá do nosso lado remando.” Não à toa, os três são conhecidos no circuito como Mad Dogs, ou, como Marcio também define o trio, de forma bem-humorada,“os psicopatas mesmo”.
Essa mudança de paradigma das ondas grandes atraiu logo a elite dos big riders. Os brasileiros Alex Martins, Rodrigo Resende, Carlos Burle e os gringos Shane Dorian, Grant Baker, Greg Long e Mark Healey. Pelos três, quatro anos seguintes, começaram, juntamente com os Mad Dogs, a enumerar performances históricas. Até que, ano passado, Danilo Couto levou o prêmio da Billabong Ride of The Year com uma onda inexplicável que a Trip detalhou longamente na edição 198.
“Abrimos a porta não só para os surfistas profissionais, mas também para uma galera mais nova de Maui que vai cair em Jaws de outra forma de hoje em diante”
Marcio, sem falsa modéstia, expande ainda mais o significado daquela sessão de 2007. “Abrimos a porta não só para os surfistas profissionais, mas também para uma galera mais nova de Maui que vai cair em Jaws de outra forma de hoje em diante. Isso mudou a cabeça da molecada, colocou Maui no mapa de outra forma.”
Cachorros loucos
O último grande swell a quebrar na ilha de Maui foi prova disso. Jaws nunca havia visto um circo tão grande. A mídia toda a postos, a falésia lotada de gente para ver. O mar estava apinhado, crowd mesmo, cheio de surfistas cobiçando aquelas monstruosidades, dispostos a pegá-las só com o braço e a prancha. Era 4 de janeiro de 2012, um dia de sol quente que marcou, definitivamente, o fim de uma era em Jaws. O tow-in tornou-se algo, digamos... menor, quase obsoleto, já que profissionais e aspirantes de talento haviam descoberto o que era impensável fazia cinco anos, antes dos Mad Dogs. Coletes com dispositivos de flutuação de emergência, pranchas reserva em barcos de apoio e toda a infraestrutura de alguns dos mais bem patrocinados big riders. Nos dias seguintes, a imprensa especializada digital foi inundada por fotos e vídeos. Alguns dias depois, capas de revistas trouxeram os atletas que conquistaram aquele swell.
Um sujeito, no entanto, não apareceu na cobertura: Marcio Freire. Sua vocação para o underground, sua distância dos holofotes, às vezes bate na forma de carma. “Entrei no mar, mas terminou que eu estava desfocado e perdi a prancha tentando não tomar um caldo”, conta ele, que viu sua prancha nova se arrebentar nas pedras e teve de voltar a terra firme antes mesmo de descer uma única onda naquele dia. E, sem grana, patrocínio, não tinha prancha de backup nem colete com ar comprimido. “O Marcinho é um caso à parte... Ele é pura raça, puro amor ao esporte. Entra na cara e na coragem, não tem um equipamento. Quantas vezes ele caiu sozinho em Jaws? E faz tão bem ou melhor do que os outros”, Yuri Soledade define o amigo e seu funcionário no Fish Market.
Hoje, além de trabalhar no restaurante, Marcio consegue um extra com um recente negócio. Descolou duas caçambas de coleta de reciclados, e já tem 20 clientes na ilha. Não cobra nada para recolher o lixo das casas e entrega tudo aos centros de reciclagem. Uma parte, garrafas quase sempre, rende a ele US$ 0,05
por unidade. De níquel em níquel vai juntando um troco para comprar pranchas novas. E, tomara, aumentar a clientela mesmo nos próximos anos. Homem de negócios? “Quem sabe?”, desconversa, “mas me dá muita felicidade fazer isso, ajudar o planeta. É o mínimo.”
“Quando eu me diferenciei, sendo pioneiro em Jaws, comecei a pensar em me profissionalizar. Mas nunca corri muito atrás. Estou tranquilo, sobrevivendo, surfando como eu gosto”
Mas e agora, Marcio, que você foi pioneiro de Jaws, alargou os limites do surf, não pensa em aparecer um pouco mais, descolar um patrocínio? “Quando eu me diferenciei, sendo pioneiro de Jaws, a mídia começou a me dar algum valor. E comecei a pensar que eu talvez possa viver disso, me profissionalizar. Eu sinto necessidade de tentar isso, de pelo menos ter alguns anos para ganhar alguma coisa com o esporte. Mas nunca corri muito atrás... Mandei uns cinco e-mails para empresas, sondando um patrocínio. Só uma respondeu, e negando. Mas estou tranquilo, tô na boa, trabalhando, sobrevivendo, surfando... como eu gosto”, conta, com a mais desencanada das entonações.
Esse estranho desapego com a imagem pública faz de Marcio uma espécie raríssima na sociedade do espetáculo, nesta era de ouro do narcisismo. Ainda mais em um mundo como o do surf. Mesmo que no mar o ego tecnicamente não signifique muito, na verdade não é bem assim. A fama costuma significar dinheiro no bolso, além de passagens e facilidades para explorar ondas no mundo todo. E, se para muitos o anonimato é sinal de fracasso, é difícil achar alguém, aos 36 anos, tão realizado quanto o “cachorro louco”. “Morro de saudade da família, e lógico que tenho que pensar no futuro, na grana. Mas eu amo muito minha vida aqui, meu lifestyle. Seria legal ser famoso? Claro. Mas eu tenho que manter o foco no que é mais importante. A liberdade que eu tenho para desenvolver meu surf, minha saúde e minha relação com a natureza.” E Yuri Soledade, que conhece o Marcinho do mar de Itaparica, das ondas do Havaí e da cozinha do Fish Market, resume: “Quando o cara é marqueteiro, ele é marqueteiro para sempre. Quando o cara é Mad Dog, ele é Mad Dog pra sempre. Não vai mudar. Ele é o verdadeiro símbolo do surf underground”, e vaticina: “Sempre será”.