Tem um amigo meu que diz que a maior qualidade dos americanos é fazer qualquer coisa pela pátria. E o maior defeito é fazer qualquer coisa pela pátria. É assim. Grandes qualidades são grandes defeitos. Aqui também. Basta assistir a uma aparição televisiva do nosso presidente da República. Nunca antes, na história deste país, um líder nacional encarnou tão inteiramente os nossos principais defeitos e qualidades.
Craque, Lula atende publicamente por um apelido íntimo e recebe manifestações bipolares da torcida. Aplausos pela genialidade popular brasileira, malemolente, que dribla obstáculos sociais para “chegar lá”. E vaias pela personificação da crônica incapacidade brasileira, malemolente, de “chegar lá”. Em mais de um sentido, Lula nos representa. Gênio da raça, ator político supremo, pai-de-santo público em quem nosso orixá coletivo parece ter baixado para sempre (sempre?), ele realiza uma caricatura reveladora das nossas principais características culturais. A começar pela maior, a corrosão. Quem há de negar que o principal vetor da nossa formação histórica é uma corrosão deslavada de valores absolutos, a que acadêmicos de universidade ou botequim já deram os nomes mais diferentes, de “mestiçagem” a “cordialidade”? E quem há de negar ainda que essa corrosão de valores leva à corrupção, à desagregação social, mas leva também a uma forma de agregação social que passa pela aceitação e convivência orgânica das diferenças? Sim, grandes defeitos são grandes qualidades. Numa pessoa ou num país.
A encarnação do país na pessoa de Lula se esboçou em toda a trajetória da vida dele, mas o santo baixou na primeira campanha vitoriosa para a presidência. Ali, depois de três derrotas, Lula entendeu que a palavra-chave de sua história é a mesma do tema desta Trip. Riqueza. Ficou claro para o paulista de Garanhuns que berros guturais lançados do lado de lá do apartheid social brasileiro não o levariam mais a lugar nenhum. Para se transformar no herói que a nação ansiava, restava simplesmente passar para o lado de cá. De corpo e alma. Numa crítica perspicaz ao ex-sapo barbudo que tomou o lugar do príncipe sociólogo, Fernando Gabeira notou que, para Lula, presidência é ascensão social. No caminho, Lula entendeu que no Brasil afeto também é arma na luta social. Assim, repetiu “paz e amor”, mantra amolecedor, anestesiante, abre-te sésamo corrosivo para chegar às palavras que realmente estão em jogo na coisa pública. Dinheiro e poder. Não vai aqui nenhuma crítica à corrupção deste governo. Falo de fatos anteriores, como a escolha de um vice-presidente self-made man ou a elaboração de um projeto de governo que tivesse um pé em Quixeramobim, mas outro na Febraban.
O bicho não pega nem come
Em sua brasilidade, Lula samba pela trilha sonora de opostos com desenvoltura, agregando ao desfile nomes tão díspares como Suplicy e Delfim, Morales e Bush. Algo só possível num ambiente de extrema corrosão. E o entendimento visceral que Lula tem desse mecanismo brasileiro o está transformando numa figura emblemática acima do bem e, principalmente, do mal. Na eleição do mensalão, isso ululou. A maioria dos eleitores raciocinou com um “se correr o bicho não pega, se ficar o bicho não come”. Ou seja, se Lula não participa da corrupção, ele é um santo entre pecadores. Se participa, é um herói popular, o primeiro “de nós” a ascender ao olimpo da maracutaia, de onde os ricos sempre fizeram suas lambanças. Em exercício, o grande defeito-qualidade lulo-brasileiro ainda dá o tom. Os que criticam este governo por não fazer reformas urgentes, não “ir fundo”, deveriam também agradecer a Tupã porque o governo não nos levou ao grau venezuelano de polarização social. Se isso não aconteceu, não é porque o Brasil é mais complexo que os vizinhos, mas porque a nação não gerou um Chaves. Gerou um Lula, cuja capacidade de lubrificar e acomodar parece ilimitada.
No quesito evolução e harmonia, a coisa vai indo bem. Às vezes o acaso muda o ritmo do momento e alguém abandona a quadrilha (vejam que ainda insisto nas metáforas ligadas às danças típicas brasileiras). Aconteceu com o próprio Gabeira e com outros mais estridentemente dissonantes, como Heloisa Helena. Mas, embalado a samba ou música caipira, o enredo só atravessa por pouco tempo. E nosso presidente surpreende chamando para a dança um nome ainda mais improvável como, recentemente, Mangabeira Unger, que havia dito que o governo atual era “o mais corrupto da história”. Pois é. Lula não é americano, mas também faz qualquer coisa pela pátria.
*Carlos Nader, 43, é um homem de mídia. Seu e-mail é: carlos_nader@hotmail.com
