Chávez e a barriga do El Pais
Duran: "Em tempos de internet, o desastre não vem a cavalo, e sim em megabytes"
Ao publicar a foto falsa do presidente da Venezuela numa maca hospitalar, o jornal espanhol deu um dos foras mais memoráveis da história recente do jornalismo. Em tempos de internet, o desastre não vem a cavalo, e sim em megabytes
O jornal espanhol El País, no dia 23 de janeiro deste ano, publicou na primeira página uma foto do presidente venezuelano, Hugo Chávez. O corpo do homem estava deitado numa maca hospitalar e com vários tubos saindo da sua boca. Naquele momento, Chávez estava oficialmente internado em algum hospital cubano fazia algumas semanas - sendo tratado de um câncer - e no meio de um enredo político que, tranquilamente, faria justiça à literatura fantástica sul-americana¹. Ele tinha acabado de ser eleito, mais uma vez, para ocupar a presidência da Venezuela. Acontece que não pôde comparecer no dia da posse porque ainda estava internado.
O que fez a foto se tornar famosa é que a figura deitada e entubada - apesar de possuir uma papada semelhante à do presidente da Venezuela – na verdade não era Hugo Chávez. Era, isto se descobriu mais tarde, um paciente de uma clínica mexicana que tinha feito uma operação um par de anos antes. A imagem, tirada de um vídeo da internet, tinha sido oferecida a outros jornais, que a recusaram. O El País, por razões que só os editores podem explicar (se é que algum dia o farão), decidiram comprar a imagem por US$ 30 mil. Entre a publicação do que poderia ser um furo e a percepção de que todos tinham se exposto ao ridículo se passaram 30 minutos (o erro custou muito mais do que US$ 1 mil por minuto, dirão os economistas). Nos tempos da internet o desastre não vem mais a cavalo, e sim em megabytes. Meia hora em um site de informações é uma eternidade e, mesmo com a retirada da parte da edição impressa que já estava nas ruas, o jornal deu um dos foras mais memoráveis dos últimos tempos.
Tiro pela culatra
Em jornalismo isso se chama “barriga”. O furo que não existe. O pior de todos os pesadelos para quem leva a sério a profissão. Barriga, enfim, é quando a notícia falsa é descoberta². No caso do El País, um dos jornais mais respeitados do mundo e que por muitos anos foi o símbolo da transição democrática na Espanha, a barriga parece inexplicável. Só a obsessão por um caso como o do presidente venezuelano, sumido do mapa por semanas, pode explicar a afobação na hora de publicar uma imagem como aquela. Explica, mas não justifica. Checar as informações é a primeira regra que se aprende nas escolas de jornalismo. Em algum momento a vontade de furar os concorrentes saiu pela culatra.
No dia 14 de fevereiro, depois de Chávez ser submetido à quarta cirurgia em menos de 18 meses, o governo venezuelano publicou uma foto dele e suas duas filhas se entretendo com a última página do jornal cubano Granma em algum hospital de Havana. O “mistério Chávez” tinha chegado ao fim.
1 O Brasil já teve seu caso de presidente internado em hospital e com sua doença escondida dos eleitores. Tancredo Neves, que deveria ser o sucessor de João Figueiredo, foi internado em 14 de março de 1985, um dia antes de sua posse. Morreu, sem ter assumido, em 21 de abril do mesmo ano. Quem assumiu a presidência foi José Sarney, seu vice.
2 Quando a barriga não é descoberta, ela se perde em um longo túnel que dá no pátio onde ficam estacionadas as meias verdades e as meias mentiras.
*J. R. Duran, 59, é fotógrafo e escritor. Seu Twitter é o www.twitter.com/jotaerreduran