Carro para que?

Mendes: "Nesse trânsito ferrado, ficar em um carro é como estar em uma jaula que se move"

por Luiz Alberto Mendes em

  - Crédito: Nicolai Howalt, Courtesy of Bruce Silverstein, NY

Quando saí da prisão, o marketing quase me convenceu que o automóvel é sinônimo de liberdade e sedução. Mas nesse trânsito ferrado, ficar dentro de um carro é como estar em uma jaula que se move

Não tenho nenhuma ilusão quanto a meu modesto conhecimento. Mas tem algumas coisas que saltam aos olhos de tão óbvias. Tenho um amigo que possui três lojas de autopeças. Trabalha no ramo desde menino com seu pai. Portanto, uma opinião abalizada sobre carros e peças. Afirma, com todas as letras, que 80% das pessoas que possuem automóveis não têm condições econômicas para mantê-los. Diz mais: quase todos os carros com mais de dois anos de uso não estão com todos os seus equipamentos em dia. Os donos não dão conta.

Não sei dirigir e não tenho carro ou moto. Quando saí da prisão, a pressão da mídia, da vida aqui fora e das pessoas que adoram seus carros (prefiro meu cão) quase me fazem cair nessa armadilha. O marketing quase me convence de que carro é o mesmo que liberdade. Claro que nos locomover mais rapidamente amplia os espaços. Dizem até que estou perdendo dinheiro porque não tenho carro. Mas aí seria associar liberdade a consumo. E ampliar não é libertar. Por maior que seja a prisão, o homem aprisionado continua preso.

A mídia explora o fato de as mulheres gostarem de carros como elemento sedutor, como se os homens não gostassem muito mais ainda. Consegui segurar a onda inicial, quando estava mais frágil. Há carros em demasia já; os engarrafamentos são frequentes. Estar dentro de um automóvel nesse trânsito ferrado é como estar em uma jaula que se move. Você escuta rádio, liga o som, vê televisão, DVD, lixa as unhas, retoca a maquiagem e o trânsito não cede. Você se desespera, fica ansioso, rói as unhas até a carne, bate os pés que formigam no chão, abre a janela, respira, reclama, xinga e não adianta nada.

Enquanto posso, sigo relutante sem me entregar a essa tentação. Caso houvesse comprado um automóvel, estaria contando tostões, economizando, vestindo e me alimentando de forma mais barata. Não poderia tomar minha cerveja nem gastar com tranquilidade. Seria um peso. Meu trabalho é em casa, sou escritor. Saio pouco. Com o carro sairia mais e minha produção diminuiria. Deixaria de andar a pé, de me exercitar, meu corpo se alargaria e eu adoeceria.

Ansiedade e impaciência

Posso até, no futuro, pensar em comprar um carro. Terei então vencido a fase inicial e não haverá mais açodamento. Estarei tranquilo, farei o curso de condutor de veículos por uma questão de conforto. Já nada de exterior me pressionará. Terei provado para mim mesmo que posso viver sem carro tranquilamente. Então poderei até me dar ao luxo de ter o meu. Minhas economias têm crescido paulatinamente. Não necessitarei de grandes sacrifícios para ter e manter meu carro.

Décadas atrás um amigo me disse que a diferença entre mim e as pessoas comuns era a ansiedade e a impaciência. Afirmou que qualquer pessoa que vivesse de seu trabalho entenderia que é preciso passar de cinco a dez anos pagando prestações para ter uma casa ou um carro. Eu queria a casa e o carro no dia seguinte. Pois bem, parece que aprendi a lição. Estou há oito anos aqui fora, quando completar dez anos acho que já posso cogitar ter meu carro.

Luiz Alberto Mendes é autor de Memórias de um Sobrevivente.

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