Carbono 14: botas voadoras
Arthur Veríssimo conta do dia em que levou uma botinada na testa e continuou discotecando
A pista de dança bombava com neopunks, darks, carecas do subúrbio, modernosos, bichos-grilos, new romantics, skatistas, rastas, surfistas e drogadictos em geral. Observava o espetáculo dantesco das evoluções e coreografias no alto da cabine de som. A trilha sonora misturava o suprassumo do rock e seus derivados. Naquela época eu vivia no eixo São Paulo-Londres e viajava de três a quatro vezes ao ano, trazendo nas malas e cases as antiguidades e novidades do pós-punk. Meu parceiro nos turntables naquela balada era o master DJ Alois (Eddie The Monster) Lacerda. A noitada era conhecida como Incubus Sucubus, e o nosso acervo era o mais eclético e turbinado na terra do pau-brasil.
"Minha namorada na época lança o outro par da bota, que acerta minha testa e cai em cima do pickup. Confusão generalizada. Gritaria. O disco salta e a música para."
Percebo um bafafá na pista. Um surfista rola pelo chão com um punk da morte. Treta forte. Como num passe de mágica os dois são neutralizados e colocados para fora. Nossa cabine é invadida por duas be ldades estonteantes. Uma delas, com a camiseta do Xmal Deustschland, carrega uma garrafa de Veuve Clicquot, outra com os olhos saltados como um pequinês retira da bolsa uma caixinha de música recheada de cocaína, canudo de prata e espelhinho. Se sentem as donas do pedaço e dos DJs. Na primeira snifada da dondoca, uma bota voa e bate entre o seu rosto e o canudo. Minha namorada na época lança o outro par da bota, que acerta minha testa e cai em cima do pickup. Confusão generalizada. Gritaria. O disco salta e a música para. Um urro tribal coletivo emerge da pista. Alois salta como um Baryshnikov e lança nos toca-discos o clássico “Love will tear us apart”, do Joy Division. A pista delira e o transe transborda.
TRIP EMBRIONÁRIA
Para vocês se situarem, essa história aconteceu no segundo semestre de 1984. O local era o Carbono 14, a catedral cultural de todas as tribos alternativas e roqueiras de São Paulo. No prédio de quatro andares acon tecia de tudo. Shows de punk, de metal, reggae, espetáculos de dança, vernissages de artes plásticas, teatro, performances, apresentações de filmes e vídeos inéditos. Foi naquela época que conheci o Paulo Lima e o Califa, pouco tempo antes de criarem a Trip. O sumo-sacerdote do Carbono 14, mestre Castilhão, apresentou-me ao Paulo, que precisava de um sonoplasta para fazer a trilha de uns vídeos de surf. Estava dado o start da nossa parceria. O resultado vocês conhecem ao longo dos 25 anos de história da revista Trip.
Meu primeiro contato com o clã do Carbono 14 ocorreria nas areias escaldantes de Trancoso, na Bahia, no início dos anos 80. Andres Castilho, um dos mentores do Carbono, convidou-me para conhecer e fazer parte da mandala dos carbonários. Minha vida era um mar de rosas. Discípulo de Rajneesh, vivia circulando pelas comunidades alternativas espalhadas pelo Brasil. Naquele tempo já mixava sonoridades nos grupos de terapia onde a luz do di a predominava. O convite era o que faltava para infernizar e me arrastar para a noite. Em São Paulo, conheci o restante da família Castilho (a matriarca, Maria Helena, seu marido, Castilhão, os filhos, Renata e Theo). Deixei de lado as roupas vermelhas de sannyassin, a meditação, o tantra, o incenso e mergulhei sem escafandro no paraíso nebuloso do sexo, drogas e rock’n’roll. Não me arrependo de nada. Nem mesmo da botada na cabeça.