Capacidade de enxergar
J.R. Duran: "A virtude de saber enxergar foi transformada em capacidade de registrar"
A virtude de saber enxergar foi transformada em capacidade de registrar, capturar – o que nos dias de hoje pode ser feito até por um telefone, e não quer dizer grande coisa
Aparentemente ficou cada vez mais fácil fotografar. A tendência é que no futuro qualquer aparelho digital possa captar imagens por um orifício qualquer. Smart-phone, tablet e até, quem diria, pequenas câmeras fotográficas conseguem registrar com facilidade tudo o que estiver ao redor de alguém com o dedo ligeiro grudado no obturador (aguardo ansiosamente o lançamento do relógio que fotografe, no melhor estilo Dick Tracy). O detalhe curioso é que não se fotografa mais com o olho grudado no visor. Por causa do display de LCD (1) as pessoas são obrigadas a segurar a câmera – seja ela fotográfica ou telefônica – na altura dos olhos, e a certa distância do rosto, para poderem enquadrar a pessoa ou o horizonte que queiram fotografar.
O fato de nas câmeras, digamos, menos tradicionais ser forçado a esconder o rosto atrás do equipamento implica uma maior concentração sobre a imagem capturada. Ao encostar o olho no visor (um só, normalmente o outro deve estar fechado), a realidade que nos envolve desaparece e a única que interessa é a que captamos através da lente. O poder de síntese da imagem tem de ser amplificado para que possa expressar os sentimentos do que estamos tentando capturar. Quando fotografamos através da tela do display do aparelho, a alguns centímetros do rosto (a não ser que você seja míope), a foto passa a funcionar como um recorte de tudo o que nosso olhar percebe ao redor, uma percepção diferente, mais dispersa, e que não vai estar necessariamente contida dentro da imagem que estamos fotografando. O resultado pode ser imediato e real, mas geralmente é decepcionante, porque não captura tudo o que vimos, ou achamos que vimos, naquele momento. É o que se chama normalmente de uma foto amadora. Amador não significa necessariamente que seja ruim, mas poderia ser melhor se o momento exigisse um par de segundos de reflexão. As memórias seriam mais concentradas, mais generosas, e as pessoas deixariam de tentar capturar o que a câmera não registra.
A tecnologia pode ajudar a entender o mundo, mas o excesso de confiança nos aparatos turva a capacidade de enxergar o que está em nossa volta. A tendência é acreditar que o lugar visitado só vale se ele for capturado entre meia dúzia de pixels para poder ser saboreado na volta da viagem, calmamente sentado na frente do computador. O essencial é invisível para os olhos, mas se os olhos não sabem o que procurar nem sequer o superficial será capturado. A capacidade de enxergar, de ver e olhar foi transformada em capacidade de registrar, capturar – o que nos dias de hoje pode ser feito até por um telefone, e não quer dizer grande coisa.
Imagens soterradas
É preciso saber ver, olhar, enxergar e refletir sobre o que vai ser guardado para sempre em um pedaço de papel ou na tela do computador. Mas antes os olhos têm de reconhecer o que provoca a emoção para que as imagens não fiquem soterradas embaixo de outros milhares delas nos arquivos HD. A revolução das câmeras digitais me lembra uma frase de Don Fabrizio, príncipe de Salina, personagem do livro de Lampedussa. Em certo momento ele diz que “é preciso mudar para que tudo continue como está” (2). As câmeras digitais transformaram a maneira de fotografar, mas nada mudou na maneira de fazer uma boa foto.
(1) LCD são as siglas para Liquid Crystal Diamond.
(2) O livro se chama O Gatopardo. E o “gatopardismo” em ciências políticas é a arte de mudar as coisas de maneira que nada mude.
*J. R. Duran, 55, é fotógrafo e escritor