Calibre 12 versículo 2
A Polícia Militar da Zona Norte de SP convoca os PMs de Cristo para combater a violência
“Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado.” Não estava exatamente nos planos de Osvaldo Luiz Sorge encarar um dos cargos mais perigosos da Polícia Militar, mas o versículo 2 do capítulo 42 do livro de Jó, um dos preferidos desse tenente-coronel de 49 anos – 29 de PM, 10 de Igreja Evangélica –, com certeza serviu de incentivo. Sorge foi convocado pela alta cúpula – a militar e a religiosa – para assumir o comando do 18o Batalhão, à época metido em sua pior crise e longe de ser uma tropa exemplar. Mas a trajetória militar, a crença inabalável e o modus operandi do tenente-coronel o levaram para lá, em setembro de 2007.
O coronel José Hermínio Rodrigues, comandante do CPA-M3, responsável por toda a região da zona norte, fez um pedido prontamente atendido por Sorge, seu ex-colega (estudaram dois anos juntos na Academia da Polícia Militar do Barro Branco): retomar o trabalho dos PMs de Cristo, uma associação evangélica com 15 anos de existência, nas cinco companhias que formam o 18o Batalhão. Quando Sorge empunhou a Bíblia e a calibre 12 para a foto que abre esta matéria, soltou: “É a primeira vez que seguro minhas duas armas juntas”.
Antecedentes criminais
Para entender o tamanho da encrenca que Sorge assumiu, é preciso voltar para janeiro de 2007, quando começou na zona norte uma onda de chacinas e homicídios – e junto com ela surgiu a suspeita de envolvimento de policiais do décimo oitavo. O coronel Hermínio começa a tomar providências: afasta soldados do serviço para serem investigados, combate a chamada máfia dos caça-níqueis e monta operações intensivas nos focos de violência. Na condição de comandante do 18o, Sorge participa das operações, acompanha de perto o trabalho de seus soldados e incentiva o trabalho dos PMs de Cristo.
Em um ano, ocorreram 13 chacinas que resultaram em 55 mortes na zona norte, além do assassinato do coronel Hermínio, comandante da PM na região
Todo o trabalho de Hermínio, Sorge e de outros comandantes da zona norte surte efeito, incomoda os envolvidos e culmina em mais tragédia. Dessa vez, não contra um civil periférico, criminoso ou não; mas contra o próprio coronel Hermínio. Dia 16 de fevereiro de 2008, de férias, ele andava de bicicleta numa manhã de quarta-feira quando foi assassinado com cinco tiros à queima-roupa. Três policiais do 18o Batalhão são suspeitos de envolvimento e estão presos e sob investigação – também, por outros dois crimes anteriores.
Quase 16 horas depois de Hermínio, oito pessoas são assassinadas na primeira chacina do ano na capital, também na zona norte. Ao todo, do dia 14 de janeiro de 2007 ao dia 17 de janeiro de 2008, acontecem 13 chacinas que resultam na morte de 55 pessoas na região. Parte delas com indícios de atuação de um grupo de extermínio formado por policias. “Os Matadores do 18”, como batizou a reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, que vem acompanhando de perto as investigações do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa) e da Corregedoria da Polícia Militar.
Sorge não se intimidou. Segue trabalhando. Toma as mesmas precauções de segurança que sempre tomou. Até porque, em vez da paranóia e do isolamento, prefere deixar a porta da sala aberta, estar perto de seus comandados, ir pra rua com eles. “Me sinto plenamente seguro”, garante Sorge. “Eu não sei o dia de amanhã, não sei se vou estar vivo, nem você sabe, mas Deus sabe. Enquanto nós tivermos uma missão aqui na Terra, nós não seremos retirados. Fica tranqüilo que nada acontece sem a vontade Dele.”
Antes da chegada de Sorge, o 18o era um batalhão com dificuldade em firmar seu comandante. Depois de um ano de comando, o coronel Gimenez pediu transferência para Jundiaí por estar sofrendo ameaças de morte. Depois dele, o coronel Mendes ficou uns dois meses e foi transferido para a Justiça Militar. “Havia o estigma de que a área do 18o era muito crítica, os índices criminais eram elevados... pra gente foi um desafio”, conta Sorge. “Eu nunca rejeitei função nenhuma e esses desafios são interessantes... eu gosto. E Deus prepara o caminho pra gente...”
Desde que assumiu o cargo, Sorge vai levando aos poucos a palavra do Senhor para seus soldados, distribuídos em quatro companhias e uma força tática, que formam um contingente de 980 policiais, responsáveis pelo policiamento da Freguesia do Ó, Limão, Brasilândia e Taipas. Três vezes por semana acontece o serviço de capelania. Pastores voluntários visitam as companhias na hora da troca do turno (às 6h e às 18h) e ficam à disposição dos policiais que quiserem conversar.
Segundo Sorge, “esse trabalho dos PMs de Cristo dá um apoio espiritual para o policial. Antes de eles saírem para o patrulhamento, os pastores vão lá e abençoam, falam um pouco da família, dos valores. Esse serviço independe de religião. Na verdade, nós vamos lá para falar da importância do policial, da valorização dele, que o que ele faz é importante.” E o policial que se sentir confortado e quiser ir mais fundo no evangelismo pode freqüentar o culto semanal que acontece na Cefap (Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças).
Karma police
O coronel chega por volta das oito e meia e entra para sua sala sem notar nossa presença na porta do 18o Batalhão, um sobrado simpático, que mais parece um consultório de dentista, localizado no número 224 da rua Chico de Paula, na Freguesia do Ó. Logo que entramos em sua sala, ele oferece café. Sem formalidades, bem à vontade, emenda no chiste interiorano. “Eu não tomo café porque já fez muito mal pra mim.” É mesmo? “É menino... Carpi muito café e carreguei nas costas lá no interior... [risos]. Até os 20 anos de idade eu puxava um cabo de enxada.” Sorge nasceu em Presidente Venceslau, na região da Alta Sorocabana, e em 1979 foi para Presidente Prudente ingressar na escola da Polícia Militar. Formou-se em 81 e foi para São Paulo fazer a segunda parte dos estudos. A partir daí sua vida alternou entre o interior do Estado e a zona norte de São Paulo, com alguns postos de destaque. Trabalhou na Corregedoria da Polícia Militar, na Assessoria Militar junto ao Palácio dos Bandeirantes (“pra conhecer um pouco da parte política da organização”), depois comandou o policiamento de choque, o policiamento metropolitano, a cidade de Presidente Prudente e, finalmente, a cidade de Dracena, onde foi promovido a tenente-coronel.
Ele diz que já teve algumas demonstrações do poder divino. Uma delas aconteceu em agosto de 2001, quando sua viatura perseguia na rodovia dos Bandeirantes uma quadrilha que havia roubado um carro-forte. Os policiais pegaram um desvio e deram de cara com o carro dos bandidos. Levaram 13 tiros de fuzil. Na ocasião, Sorge disse que as balas que vieram na direção dele não ultrapassaram o pára-brisa. Garante que foi um livramento, Glória a Deus.
“Se você chegou aqui pensando em agir com as próprias mãos, vai um conselho de Deus: espera no Senhor”, prega o soldado-pastor Amorim
Assim que o gravador é ligado, Sorge faz questão de apresentar um comparativo dos índices criminais de sua região entre o primeiro semestre de 2007 e o primeiro semestre de 2008. Houve uma queda de 62,5% na criminalidade. Obviamente que as operações intensivas e o afastamento dos policiais suspeitos têm grande parte nisso, mas o trabalho que Sorge faz parece ser efetivo na prevenção de novos desvios de conduta. Enquanto esperávamos sua chegada, alguns oficiais vieram expressar espontaneamente sua admiração pelo tenente-coronel. Ao longo das quase duas horas de entrevista, pelo menos seis pessoas entraram em sua sala, a começar por um cabo feminino que desejou um bom-dia e trocou a jarra de água. “Antes do coronel, ninguém entrava naquela sala”, me confidencia um dos policiais. Nós só tivemos contato com os oficiais daquele turno, entre os mais de 200 que trabalham no 18o, central de comando de Sorge, mas a impressão passada foi a de companheirismo. Com direito a pegadinha. Os policiais passaram o dia apresentando para os que chegavam uma arminha de brinquedo que dá choque quando o gatilho é puxado. Eles diziam: “Olha com o que os ‘malas’ estão assaltando agora. Atira pra ver o barulho que faz”. E dá-lhe gargalhadas.
Quando perguntado se dá para fazer o paralelo com um pastor evangélico, no sentido de orientar seu rebanho, Sorge concorda. “Tem muitos comandantes com perfil mais administrativo, mas muitas vezes nós temos que levantar da cadeira e sentar no banco da viatura para sentir a real necessidade do policial. É isso que o comandante tem que fazer, acompanhar sua tropa em serviço.” Na véspera, o coronel acompanhou in loco a operação montada por seu batalhão para o julgamento do caso Nardoni no fórum de Santana.
Depois de um almoço regado a frango à parmegiana, voltamos ao batalhão para encontrar o pastor Robson Garcia, chefe dos capelães dos PMs de Cristo. Era com ele que iríamos para o culto semanal no Cefap. Assim que Robson entra na sala do coronel e avista a Trip sobre a mesa, pergunta empolgado se “é a mesma revista de surf de antigamente”. Digo que sim. “Eu tinha a número 1, a 2, a 3... Eu lia muito quando era surfista”, recorda ele. “Eu descia para Ubatuba, era rotulado de maconheiro, só que na minha prancha estava escrito Cristo Salva. E os caras tiravam sarro. E qual é o grande movimento cristão que tem hoje? São os surfistas de Cristo, a Bola de Neve. Eles deixaram de ser surfistas? Não, mas deixaram de se drogar.”
A bordo do carro de Robson, em plena marginal do Tietê, Sorge vai no banco de passageiro sem colete à prova de balas e com a pistola .40 guardada dentro da pasta. Robson fala das aflições do policial: “As principais são família, parte financeira e stress no trabalho. É um círculo vicioso. O salário do policial é extremamente baixo, aí ele tem que fazer bico. Sai do serviço, vai pro bico, dorme quatro horas e vai pro trabalho de novo. Ele começa a perder o contato com a família, se envolve com uma mulher na rua e, pronto, desarranjo familiar”.
O coronel Sorge emenda que a polícia é contra o bico “porque é uma conduta desviante. Nós percebemos que o pessoal está partindo para o outro lado, usando da posição pra fazer bico ou atividades ilegais, se envolvendo com desmanche, bingos. Todo dia tem ocorrência de caça-níqueis”. Se a falta de perspectiva abre precedente para o crime, abre também para a religião evangélica. E o maior apelo, se comparada à Igreja Católica, é o fato de a Evangélica prometer a recompensa pelas benfeitorias em vida. Basta seguir ao Senhor e esperar a hora da graça prometida.
O Senhor é meu pastor
A pregação feita pelo pastor-soldado Carlos Alberto Amorim no culto daquela semana tratava disso. “Dar jeitinho não leva ninguém a lugar nenhum. Bom é esperar no Senhor, nosso Deus. Nesta tarde, se você chegou aqui pensando em agir com as tuas próprias mãos, vai para a tua vida um conselho da parte de Deus: espera no Senhor, porque o fruto que você vai colher será fruto de bênção. Louvado seja o nome do Senhor. Aleluia!”, bradava Amorim para um auditório preenchido por mais de 60 oficiais. No fim, o coronel Suita, comandante daquela unidade e católico praticante, puxa um Pai-Nosso.
No culto, Sorge se emociona, parece em transe. Chora, reza, não esconde a satisfação de estar ali. Depois vem apertar minha mão e a sente suada. Logo ele chama a atenção de um dos PMS de Cristo: “Ele foi tocado pelo culto. O menino tá suando”. Sorge virou evangélico há dez anos, quando, ele diz, o Senhor curou um câncer de próstata em seu pai. “Aí eu realmente decidi ser evangélico. E digo pra você que venho fazendo mais do que já fazia antes. A Bíblia fala para amar a Deus acima de tudo, e seu irmão como a ti próprio, então tento estender um pouco desse amor para cada um dos meus policiais, falar que nós realmente somos importantes. Deus prepara essas posições pra gente. Na verdade, nós vivemos da dispensação Dele, eu queria deixar essa mensagem pra você. Que você é importante pra Ele.” E coronel, para encerrar, tem alguma passagem da Bíblia com a qual o senhor se identifica mais, que tem mais a ver com o seu trabalho? “Eu sempre digo o salmo 91,7: ‘Mil poderão cair ao teu lado, e 10 mil à tua direita; mas tu não serás atingido’.”
“Eu não sei se vou estar vivo amanhã, mas Deus sabe. Enquanto tivermos uma missão na Terra, não seremos retirados”