Cadeia Nacional

Com o processo de democratização no Brasil, houve conquistas dentro dos presídios

por Luiz Alberto Mendes em

Eu estava cumprindo 12 anos de pena e a prisão era um horror. Os mais fortes abusavam dos mais fracos, presos eram estuprados e éramos inimigos uns dos outros. Assassinatos ocorriam constantemente e o barbarismo imperava. As celas eram individuais e vivíamos trancados como animais. Somente rádio de uma faixa era permitido. Visitas só eram autorizadas por 40 minutos; uma carícia podia resultar em um mês no castigo da cela-forte. 

Foi Ruth Escobar quem nos abriu os olhos. Ela fez uma oficina de teatro conosco e mostrou a nossa realidade. Éramos divididos pelos que dirigiam a cadeia, os guardas nos espancavam, torturavam e tornavam a nossa vida um inferno. A atriz afi rmava que unidos acabaríamos com aquele massacre contínuo. Despertos, fizemos greves de fome, de trabalho e de recreação. Sacrificamos tudo em nome de nossos direitos. Eles nos moeram de pancadas e jogaram os cães da PM contra nós. Tentaram nos controlar, mas estávamos determinados. 

Franco Montoro foi o primeiro governador de São Paulo eleito, após o golpe militar de 1964. Seu secretário da Justiça, José Carlos Dias, ouviu nossas reivindicações. Iniciou-se a política dos direitos humanos. De 1983 a 1985, depois de décadas de sofrimento, obtivemos algumas vitórias. O direito à visita íntima e poder ter televisão na cela foram algumas delas. 

Minha mãe e meus amigos se cotizaram para me dar uma televisão. Passei a primeira semana assistindo na cela. À época, Chico Anysio e Jô Soares disputavam audiência. Assisti a filmes maravilhosos; ótimos musicais; festivais com grandes orquestras e magníficos cantores. Até o programa do Silvio Santos era interessante. As novelas eram épicas, ricas, retiradas diretamente dos livros. Não havia qualidade, mas as interpretações eram magistrais e suplantavam as difi culdades. Televisão era entretenimento, informação, alegria e não havia quem não gostasse.

GUINADA À DIREITA

Não sei se ficamos tão impressionados com a televisão que não percebemos, mas aos poucos ela foi se revelando. A formação das redes de TV era condicionada pelos militares: era preciso fazer o jogo deles. Dar o circo e informar o que a censura permitia. Depois da festa que foi o início da televisão no país, houve essa consciência. As máscaras foram arrancadas; fi cou claro que as novelas alienavam; os shows foram enfraquecendo; os programas humorísticos deixaram de ser inteligentes e se tornaram estupidificantes; os de auditório tornaram-se enfadonhos e seus apresentadores, duvidosos. As redes, de propriedade de poucas famílias e agora livres dos militares, tornaram-se conscientes do poder que possuíam. Passaram a influenciar a política da nação por conta própria. Hoje estão aparelhados por partidos políticos, querendo uma democracia que os favoreça. Os programas jornalísticos ficaram tendenciosos. A banalização do crime nas ruas passou a ser o divertimento das tardes. Os jornalistas, com exceções, assumiram posições políticas quase sempre à direita, defendendo interesses dos patrões. 

Resultado: há uma migração para a TV a cabo. A concorrência da TV por assinatura, da internet e dos vídeos on demand parecem estar lançando uma pá de cal sobre a TV aberta. As pessoas ficaram mais críticas e exigentes em termos de programação. Há ainda uma sobrevida da TV aberta por conta das novelas. Mas o tempo vai sendo acelerado e, em breve, não haverá mais espaço para nada tão extenso. Será o fim da TV aberta? Dá vontade de dizer: tomara! Mas nada sei do que seja certo ou errado. Parece que existe apenas o que cada um escolheu para si. Do resto, nada se sabe.

*Luiz alberto Mendes, 62, é autor de Memórias de um sobrevivente. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com

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