Caçada olímpica
Na Amazônica, índios treinam arco e flecha para buscar o ouro nas próximas Olimpíadas e a refeição do dia
É madrugada na Floresta Amazônica. O breu toma conta da mata fechada no entorno da comunidade indígena Três Unidos, uma tribo da etnia cambeba instalada às margens da boca do rio Cuieiras, a pouco mais de 60 quilômetros de Manaus. No interior da selva, sozinho e inerte com seu arco sobre o galho de uma árvore, o jovem Iagoara, 17 anos, ignora a ausência de luz e mantém sua mira no incauto caititu, uma espécie de porco-do-mato. A primeira flechada acerta o dorso do animal e o faz tombar. A segunda estocada é tão profunda quanto sua morte.
O abate seria só mais um entre tantos na rotina do valente nativo de olhar sereno, não fosse por uma condição. Quando se concentrou para não deixar o caititu fugir, ele tinha dois objetivos: o jantar e uma das seis vagas reservadas para a seleção brasileira de arquearia que irá participar da Olimpíada do Rio de Janeiro em 2016. “Entro sozinho no mato para caçar desde os 9 anos. Eu sempre sei a trilha que cotias, capivaras e porcos-do-mato fazem para comer. Aí é só ficar na espreita até eles chegarem perto. Só não peguei ainda uma anta, mas um dia eu pego”, conta Iagoara, que sonha também com uma medalha olímpica.
A meta ambiciosa do talentoso índio – que no RG é Drean Braga da Silva – é compartilhada com mais sete jovens índios das etnias baré, carapanã e cambeba, com idades entre 14 e 19 anos, pinçados nas seletivas que começaram em janeiro deste ano com cem participantes de diferentes regiões do Amazonas. Neste mês, será feita mais uma peneira para definir o grupo de seis arqueiros indígenas que irão se aprimorar no centro de treinamento na Vila Olímpica de Manaus ao longo de 2014 para tentar conseguir o índice para os Jogos no Brasil, em que os principais concorrentes serão os russos, os italianos e os atuais campeões olímpicos, os sul-coreanos.
Coordenado pela Fundação Amazonas Sustentável (FAS), em parceria com a Federação Amazonense de Tiro com Arco (Fatarco), a Confederação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Coipam), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e a Secretaria de Estado da Juventude, Desporto e Lazer do Amazonas (Sejel), o projeto tem origem na convicção do professor Virgílio Viana, superintendente-geral da FAS, de que o talento inato dos índios com o arco e flecha é um fator determinante para credenciá-los como atletas profissionais. “A base é estimular positivamente a autoestima desses jovens indígenas com a inclusão social que o esporte traz”, diz Virgílio, PhD em biologia da evolução pela Universidade de Harvard e especialista em Amazônia.
Treino in natura
Quando não está caçando ou estudando (a comunidade Três Unidos, onde moram 17 famílias, conta com duas escolas – uma municipal e outra estadual, mantida pela FAS e financiada pela Samsung) –, Iagoara treina com outros jovens que não puderam participar ou caíram nos testes, além de Mui Pirvata e Wuanaiu, dois outros arqueiros que ainda lutam pela vaga na seleção brasileira. O trio, que já fez a transição do arco indígena, feito apenas com pedaços de palmeiras, para o arco recurvo olímpico, composto de lâminas, punho, corda, estabilizadores e mira, não tem folga nos dois treinamentos diários dados pela professora de educação física e caçadora de talentos esportivos de alto rendimento Márcia Lot. A trégua só é dada quando a exigente, porém brincalhona, paulista de 54 anos, que já trabalhou nas Olimpíadas de Barcelona (1992), Atlanta (1996) e no Pan-Americano do Rio de Janeiro (2007), manda a turma mergulhar nas calmas, limpas e escuras águas do rio Cuieiras para relaxar e descontrair.
Devidamente molhado e sem demonstrar sinais de cansaço, Wuanaiu, também com 17 anos, ganhador da medalha de ouro na sexta edição dos Jogos Indígenas na aldeia baré, diz que sua mira melhorou desde que começou a usar o arco olímpico. “Hoje em dia caço mais e também consigo pescar mais tucunarés na época da vazante do rio.” Ele também revela sua vontade de estudar medicina: “Meu avô é curandeiro. Aprendi com ele a vontade de ajudar as pessoas”.
O precoce Mui Pirvata, 15, ameaçou fugir com sua namorada há três meses para casar no outro lado do rio, caso os pais de ambos não aceitassem a decisão. Já que aceitaram, ele só quer saber da arquearia. “Em menos de um ano o treinamento já me ajudou muito. Antes eu só flechava de canhoto, agora já posso usar os dois braços”, conta, sob o olhar admirado de Márcia.
Espírito de equipe
De volta à areia fina e branca da praia, eles recomeçam os tiros, disparados, em média, 300 vezes por dia, a uma distância de 40 metros (na Olimpíada serão 70 metros). “Não basta ter só talento. É preciso que eles mostrem atitude e que estão abertos para o desconhecido. Minha função, além de treiná-los, é provocá-los”, afirma Márcia. “Eles são muito puros, quase nunca saem da tribo. Na primeira vez que fomos para Manaus, para participar de uma seletiva, eu disse que iria levá-los para conhecer o shopping center, um lugar onde as portas e torneiras abrem e fecham sozinhas. Quando chegamos, dois dos melhores arqueiros travaram e não entraram. A ideia é fazer isso para que eles não corram o risco de se recusar a viajar de avião, por exemplo”, conclui a treinadora, que se diz encantada com o caráter dos índios.
Ainda que sejam competitivos, a índole deles se revela em atitudes pró-coletivas, uma atitude definida como natural pelo cacique Triucuchuri. “Nada abala nossa autoestima. Não temos inveja. Quem fica de fora torce pelo outro, mesmo que seja de uma etnia diferente”, diz o líder cambeba, enquanto monta a fogueira que irá assar a carne de caça que chegará no começo da noite.
A força mental e o talento inato, demonstrados pelos arqueiros das variadas etnias amazonenses, derrubaram paradigmas de que os índios, por seu espírito livre, retratado desde os tempos da colonização e escravatura no Brasil, não fossem capazes de se adaptar à regularidade e à disciplina dos exercícios intensivos. Quando o idealizador Virgílio Viana falou de sua ideia, a primeira reação do técnico da seleção amazonense de tiro com arco, o paulista Roberval dos Santos – considerado um dos melhores arqueiros do Brasil e principal responsável pelas avaliações e treinamentos –, foi de descrédito. Mudou de opinião na primeira oportunidade que teve de testá-los. “Eles têm capacidade inata de mira, concentração e força, além de uma adaptação surpreendente. Em três dias eu consegui ensinar fundamentos que precisaria gastar quatro ou cinco meses se fosse para um arqueiro não indígena”, conta o treinador, que disputou a última etapa da Copa do Mundo da modalidade, em Antalya, na Turquia, e por isso não aparece nas fotos desta reportagem.
A expectativa e ansiedade dos três cambebas são grandes. Entretanto, além da vontade de conseguir o status de campeões reconhecidos mundialmente, eles carregam consigo o desejo de usar esse treinamento para melhorar o cotidiano da aldeia. Afinal, que troféu tem mais valor? Uma medalha no peito ou um caititu no jantar?
Na mosca - Ou quase Apesar da iniciativa de treinar os jovens índios, o caminho dos atletas do tiro com arco é bem longo. Na Olimpíada de Londres, só um dos nossos arqueiros – Daniel Xavier (foto abaixo) – conseguiu índice para a disputa individual, mas não foi muito longe na competição (ocupou o 51º lugar). Apesar das raízes indígenas, as competições desse esporte no Brasil são recentes, começaram a acontecer na década de 1950. Nossos melhores resultados até agora foram nos já distantes anos de 1972 e 1983, quando conseguimos o bronze nos Jogos Pan-Americanos – a melhor colocação na Olimpíada foi o 30º lugar de Vítor Krieger, na Olimpíada de Barcelona, em 1992. Olhando pelo lado positivo, o arco e flecha é uma das modalidades mais democráticas: é comum ver quarentões acima do peso no pódio. Se o treinamento for feito pensando a longo prazo, não olhando apenas para os Jogos do Rio, há boas chances de o país evoluir no esporte.Na mosca - Ou quase. |