Bob Burnquist
O skatista conta como desafia a morte no skate enquanto cria uma família exemplar
No pico da fama, dos títulos e dos recordes, do alto de seu teco-teco, Bob Burnquist está com os pés no chão. Aos 32 anos, o maior atleta brasileiro em atividade ainda arrisca a vida em manobras impossíveis, mas também constrói sua visão do futuro criando megarrampas monstruosas e uma família exemplar
A primeira vez que Bob Burnquist subiu ao pódio para ganhar uma medalha de ouro ele não a aceitou. Pegou mal, maior clima entre a comissão técnica. Mas o pequeno Bob, bom uma impúbere década de vida, tinha sua razão. Era apenas o goleiro reserva de um time de handebol, e não botou os pés na quadra durante o torneio para merecer a honraria. Hoje, ele resume o sentimento: “Nada contra esporte coletivo. Mas ali eu vi que precisava de um que dependesse de mim. Se eu perdesse, era culpa minha; se eu ganhasse, o mérito era só meu”. Sorte do pequeno e do adulto Bob ter ganhado, no dia em que completou 11 anos, um skate zero bala.
Sorte não, já que Bob não crê nisso. Carma, ele prefere – uma marca inequívoca do destino. Assim como as precisas manobras que o trouxeram até aqui, a cozinha de sua casa, onde nos concedeu esta entrevista. Do lado de fora, seu rancho: um terreno amplo com lindas vistas, no sul da Califórnia. Um curral com um cavalo, uma galinha e algumas cabras. Também uma pista de skate impecável, um bowl fluido, um looping e uma ressaca de ondulações sortidas para a alegria dele e de seus compadres. Subindo uma pequena pirambeira, o item mais luxuoso de sua gleba: a maior rampa de skate do mundo. A megarrampa, como é conhecida. Seu playground.
Carma bom o dele, sincronizado com a ascensão do skate ao público de massa. O esporte tomou novos ares e ganhou dimensão de showbiz. Orçamentos anabolizados por marcas globais financiaram eventos e engenharia inéditos para skatistas. E permitiram que o moleque do Brooklin paulistano se tornasse um calmo e próspero pai de família.
Foi Lótus, sua primeira filha com a também skatista Jen O’Brian, que apertou de vez seus parafusos. “Antes eu não me preocupava com campeonato, não queria saber de muita coisa.” Quando a mocinha chegou ao mundo, Bob estava decidido a fazer sua farra render. Ganhou o X-Games em 2001, se tornando o primeiro brasileiro a levantar um caneco mundial no esporte, e começou a voar mais alto – literalmente. Tirou brevê de piloto, começou a saltar de paraquedas e a arriscar voos maiores na pranchinha. Foi quando seu nome se fez.
Desde então, extrapolar as fronteiras do skate é seu ofício. O único que teve até hoje. Ouro novamente nos X-Games de 2003, 2005, 2006, 2007 e 2008. Preciso e calmo no ar, é o mais estável e elegante da elite do skate. Nos torneios, Bob quase nunca erra. E quase sempre apresenta diante das massas manobras nunca vistas. Seus rivais também são sua turma nos EUA: Tony Hawk, Jake Brown e Danny Way. Os dois últimos formam com ele, Bob, o trio especialista na megarrampa.
Em novembro passado a monstruosidade da engenharia desenvolvida para os X-Games, e para o quintal de Bob, viajou a São Paulo e foi montada no Sambódromo. Bob viabilizou o evento, levou Jake e Danny e ganhou o título na megarrampa – além de ter dado a chance a alguns brasileiros voarem pela primeira vez.
Da sua parte vai bem, obrigado: com a cara limpa de bom moço, já varou uma rampa para voar sobre o Grand Canyon e aterrizar de paraquedas; foi o primeiro a fazer um looping de skate em um tubo; o primeiro a completar um giro em um looping sem a parte do topo da rampa. A lista de inéditas pode seguir em uma ladainha terminológica do esporte.
O último título mundial, ano passado, veio como o primeiro: depois de uma filhinha, Jasmin, a primeira com Verônica, sua mulher hoje. Conheceram-se no Rio, por... carma. Ela já era mãe de Vitória, a doce menina de 5 anos que completa a família no rancho. Cercado pelas moças, falou conosco sobre a vida que calculadamente arrisca vez ou outra. Sem vocação para emprego, mas disposto a comandar negócios, Bob é o orgulhoso proprietário da Burnquist Organics, que começa a tomar vulto com parcerias pela Califórnia.
Neste ano a empresa retoma a produção de verduras em sua terra em Vista. E recente-mente ele associou-se à Toyota para o lançamento de um modelo híbrido de utilitário. Aos 32 anos, Bob ainda vê dez anos de auge no skate. Está com um filme pronto já pensa em lançar um livro de fotos de suas proezas. E continua, sem cerimônia, a declinar prêmios duvidosos.
Por conta da megarrampa e dos feitos em cima dela, Bob ganhou o título de “Rei do Skate”. Na cerimônia, diante de colegas, amigos e rivais, tentaram meter uma coroa na cabeça do campeão. Cetro, trono, tudo. Sem fleuma real, dispensou a coroação e o retrato. É que, depois de 21 anos de skate e do imerecido pódio de handebol, o ainda moleque Bob Burnquist percebeu que, mesmo sozinho em cima do skate, o mérito de chegar tão longe pode ser dele. Mas não é só dele.
Vendo seus vídeos antes desta entrevista, só pensei nesta pergunta: você era bom de física na escola? Física?! Eu não era bom, mas também não era ruim. Era uma matéria um pouco mais difícil... Mas acho que é bom nem saber muito; no meu caso, acabo pensando demais. No skate você calcula velocidade e ângulos pelo feeling, não porque está fazendo conta na cabeça. Mas eu gostava de matemática, ainda gosto, até por isso tirei o brevê de piloto. Não tive tempo de fazer faculdade, e tirar a licença foi voltar aos estudos, fazer cálculo de vento, vetores, conversões, espaço aéreo. Isso eu acho maneiro.
Te pergunto porque você também projeta rampas. Quando criança pensava que ia ser arquiteto. Aí na aula de geometria eu fi cava bem focado. Mas construir e desenhar rampa vem mais da habilidade criativa do skate que da mente calculista do arquiteto. Olhômetro mesmo.
E como foi o projeto da megarrampa que você trouxe a São Paulo? Foi tudo muito junto com o Danny Way, uma colaboração. Ele sempre teve esse projeto de fazer uma rampa para quebrar os recordes de salto em distância e em altura numa pista só. E eu sempre tive essa missão de ser pioneiro, em vez de ser só mais um. Eu vejo como uma extensão da minha carreira, uma visão de futuro. E os dois fazendo juntos, temos coisas em mente que a gente resolve mais rápido do que se tentasse sozinho.
E vocês são rivais... Se você olhar do lado de fora, sim. Mas de dentro é parceria total. A gente conversa em outros termos. É uma questão de amizade, não de rivalidade. Principalmente nesses desafi os maiores, que não campeonato, a gente joga tudo de lado e tenta o melhor.
Você tem disciplina de treinos? Não. Minha disciplina é que, se vou andar de skate, eu alongo. O skate pra mim não demanda tanto, consigo me manter sem precisar fi car em cima. Então meu jeito de trabalhar é divertido. Se eu não quiser andar de skate, eu não ando. O campeonato pode ser daqui a uma semana, não adianta forçar.
Pergunto porque, de fora, pelo seu nível de performance, dá pra imagina um treino espartano. Não! Graças a Deus a coisa vem natural. O importante é manter a mente aberta porque durante os eventos as coisas acontecem. Não chego com um número ensaiado pra ganhar campeonato. Quando treino, na maioria das vezes estou fi lmando, tentando manobras técnicas. Mas isso não quer dizer que vou levá-las para o campeonato. Muito provável que não. De tanto andar dessa forma, as manobras mais básicas já vêm mais natural, se um pé está errado você vai para uma outra manobra que dá para encaixar. Mas isso tudo é improvisação.
Nos X-Games, seus maiores rivais na megarrampa, o Danny Way e o Jake Brown, tomaram tombos históricos. Você nunca. Por quê? Já cheguei perto, tomei uma chacoalhada de um jeito que machuca. Mas é assim: por mais que seja perigoso, eu vou gradualmente. Mesmo no campeonato, onde é tudo ou nada, vou com um pouco mais de cautela. Tem gente com um estilo do skate mais atirado. O Danny, por exemplo, o estilo dele é mais louco, andar assim é pedir para se machucar. Só que ele chegou aonde chegou sendo do jeito que ele é. É essa pessoa extremamente evolutiva justamente porque ele se joga desse jeito.
Você acha que não arrisca tanto, mas voa tão alto quanto... Eu me arrisco, mas acho que uso mais a cabeça [risos]. Mas isso não quer dizer que não possa acontecer comigo. Só que o meu jeito de atacar é mais calculista. No salto do Grand Canyon, por exemplo. Superarriscado, mas eu pensava onde poderia bater, tomar uma porrada e conseguir abrir o paraquedas. Era mais seguro fazer o salto daquele jeito porque mesmo capotando eu voaria a uma distância boa da pedra. Se eu não estivesse confi ante no que estava fazendo, eu não teria ido.
E como um projeto desse acontece? Você vende antes, um patrocinador banca, você paga do bolso? É uma produção grande. Primeiro é minha vontade de criar, viabilizar tudo. Segundo lugar eu sei que vou ter exposição e um monte de gente vai falar desse negócio. No caso do Grand Canyon, porque foi o primeiro projeto desse tipo, fui lá e fiz. Em um novo projeto, óbvio que vai incluir pagamento, o patrocinador entra, TV entra e eu vou cobrar tanto.
E, como sua cabeça fica antes de descer uma megarrampa, de fazer um megassalto, você se sente diferente, consegue manter a calma? Eu me acalmo na respiração, visualizando o movimento, pensando na estratégia. Mas, se vou descer da parte mais alta, independentemente se é campeonato ou não, tipo 70 pés, bate aquele nervoso, frio na barriga. Mesmo que eu acostume, tenha confi ança na rampa, quando você tá naquela velocidade não tem como não bater um nervoso.
Essa sensação vicia? Vicia pra caramba. Tanto que às vezes estou sem andar há um tempo, ponho o equipamento só para dar um três meia e um aéreo [risos]. Depois que faço já saio tremendo um pouco, aí passou... tudo certo.
Um clichê das declarações de gente que bate recordes é que não existem limites. Você mesmo já disse isso. Mas na realidade existe um limite. Chega uma hora que não dá pra ir mais rápido ou mais longe apenas com o corpo humano. Você vê um limite próximo para o skate? Não. Há o limite do corpo, da habilidade, nossa fragilidade. O que não existe é o limite da mente e da habilidade de criar. A falta de limite de que estou falando é a da evolução, não a do tamanho da rampa. A gente não vai fi car fazendo rampa de 100, de 200, de 300 pés. Mas, dentro desse limite, não tem limite para a manobra, para a expressão. Pelo menos sempre tentei andar de skate dessa forma, independentemente de qual rampa ou do que as pessoas estão fazendo... Sempre tento pensar em alguma coisa única que ninguém fez.
Exemplo? Pode ser o looping que dei em um tubo. O Tony Hawk estava seguro no looping na rampa, e fomos lá em casa tentar fazer o looping no tubo, dar a volta completa em um cano mesmo. Só sei que ele perdeu o controle, caiu com tudo, bateu a cabeça, quebrou a bacia, se estourou inteiro. Depois de uma semana aquilo não saía da minha cabeça. Eu tinha que fazer logo a manobra.
O fato de o cara se quebrar todo não te faz pensar duas vezes? Não. Na verdade me dá vontade de fazer o mais rápido possível, para aquilo não crescer na minha mente. É psicológico mesmo. Se não fi zer logo, cria uma barreira maior depois. A primeira coisa que faço se eu caio é tentar de novo. Então na minha cabeça esse tombo do Hawk me forçou a ir. No dia seguinte ao que consegui, fui à casa dele mostrar o vídeo. O tombo dele estava na mesma fita.
Você está com 32 anos. Quanto tempo acha que tem de auge? Dá uma olhada no Tony Hawk. Ele se aposentou, mas está competitivo. Se for disputar um campeonato vertical agora, é capaz de ficar entre os três. Eu tento visar isso, comendo bem, tentando me manter, sei lá, mais uns dez anos, vamos dizer...
Não sente dificuldade em disputar com um moleque de 20 anos? Não. Se eu fosse andar só de vertical, talvez. Mas a megarrampa me deu mais longevidade. Porque para desenvolver a técnica toda leva tempo, não é qualquer um que desce. Mas quando eu era moleque não tinha megarrampa. Então os skatistas de 19, 20 anos que estão encarando isso agora vão conseguir ir mais longe ainda. E isso é o que faz o skate evoluir.
Falando em evolução, como foi sua infância? Infância? Cara, não saí dela ainda, não! Se Deus quiser até eu morrer vou estar nessa mesma linha [risos]. Nasci no Rio, nos mudamos muito até meus 6 anos, até chegar a São Paulo, na casa do Brooklin. Minha infância começou ali, andando de bike, depois de skate.
Como apareceu o skate na sua vida? Quando a pista da Ultra foi construída, a três quadras de casa. Lembro que uns amigos meus andavam já, e um deles perdeu uma bola que eu tinha emprestado. Ele me deu um skate dele em troca, e eu saí todo amarradão. Fiquei andando dentro de casa, no carpete. Quando fui fazer meu aniversário de 11 anos, pedi para o meu pai um skate de presente. Ele comprou um inteiro desmontado, e a gente passou o dia montando. Não esqueço.
E você andou bem logo de cara? Não, mas eu era atirado. Quando eu era moleque tomava os piores tombos. O pessoal falava “porra, se mata logo”. A primeira vez que vi uma rampa grande, eu andava de skate havia 15 dias, eu tentei descer. Dei com a cara no chão na hora. Levantei e tentei mais uma vez. Dei com a cara no chão de novo igual. Eu não era muito bom, mas sabia que ia andar de skate o resto da minha vida.
E quando você entendeu que aquilo podeira ser uma carreira? Houve uns campeonatos em São Paulo, e eu estava me destacando. Mas ver que a coisa era profissional mesmo, acho que foi quando eu fui pro Canadá correr meu primeiro evento primeira coisa que faço se eu caio é tentar de novo. Então na minha cabeça esse tombo do Hawk me forçou a ir. No dia seguinte ao que consegui, fui à casa dele mostrar o vídeo. O tombo dele estava na mesma fita.
E sua cabeça como ficou? Foi tudo muito rápido na minha trajetória. E, quando chamaram meu nome, e eu tinha ganhado, fiquei olhando pro lado, não acreditava direito. Mas pensei ali que eu ia fazer a coisa acontecer. Logo os caras me deram um salário, US$ 700 por mês, um pessoal de San Francisco. Aí o salário foi aumentado, eu catava um patrocínio de eixo, um de roda, um de shape. E eu só precisava andar de skate! Aí eu já tava com uns 18 anos.
Então nunca teve um emprego? Não. Fui muito abençoado nesse sentido. Teve uma época em que abri um restaurante aqui nos EUA, e trabalhei de garçom mais pra conhecer a galera. Fiquei dois dias nessa. Eu pensava: imagina ter que ir todo dia trabalhar desse jeito? Deixa eu ir pra casa aprender umas manobras que ganho mais.
E quando começou a entrar mais dinheiro na sua vida? Depois do campeonato do Canadá que eu ganhei, tive o convite para o primeiro X-Games. E eu corro os X-Games desde a primeira edição, tá na 14ª. Antes eu fazia dinheiro com as marcas do meio do skate. Mas aí tem um limite, eles não vendem tanto. Com o X-Games foi o início da exposição em massa. E as marcas corporativas começaram a entrar.
É basicamente o patrocínio ou os próprios campeonatos que dão dinheiro? No começo me dei bem nos campeonatos. Ganhava quase todos os eventos de vertical. Então era US$ 10 mil, US$ 15 mil o primeiro lugar. Mais a melhor manobra etc. Lembro de quando em um fi m de semana saí com US$ 23 mil, mais uma caminhonete. E hoje em dia, se você ganha um X-Games, são US$ 50 mil.
Foi aí que começou a construir as pistas no seu quintal? Meu ambiente de skate é o quintal. Eu construí isso aqui em casa porque fi cava correndo um campeonato atrás do outro, e eu queria fi lmar nas pistas, treinar coisas novas. E com o tempo, nas pistas por aí, os moleques começaram a me pedir: “Bob, faz isso, faz aquilo...”. Eu precisava de sossego e botei na cabeça essa pista. Porque, quando virava muito a atenção pra mim, eu pensava que skate não é isso. Nem queria mais correr campeonato, mesmo no auge, ganhando todos. Eu estava fazendo a mesma coisa. Então essa pista foi para voltar à criação, fazer vídeos, evoluir. Para ir aos campeonatos preparado de uma forma muito mais natural. Senão eu teria que entrar num regime militar, ir para a pista, treinar três horas, malhar, aí tomar banho...
Aí já vira emprego, o que não é a sua... É isso mesmo. Fica uma coisa meio fora do que é o skate pra mim. Quero andar de skate sem ninguém tirando foto, me divertindo só eu e os amigos. Então vou pro evento preparado para lidar com aquele monte de gente. Porque aquele circo todo drena, sabe?
Nos X-Games, você é tratado como rock star antes de descer uma megarrampa. É preciso ter algum prazer ou conforto nisso para segurar a pressão? O que eu sinto é a responsabilidade de manter o meu nível no skate. Na cabeça das pessoas sou outra pessoa, longe da realidade. Eu sei quem sou, o que posso fazer e o que pode dar errado, e não tem por que não conseguir segurar a bronca. Mas é um balanço muito sensível entre confi ança e modéstia demais. Porque se você for muito humilde em relação a sua habilidade você acaba se reduzindo mesmo. Já tive crises comigo, me questionando, “será que eu mereço tudo isso, será que eu sou tudo isso?”. “Eu devo continuar correndo atrás e ter essa atenção ou desisto porque não quero essa história toda para mim?” Mas foi lendo, estudando, que aprendi o seguinte: pode brilhar à vontade, não tenha medo de fazer sucesso. Desde que o brilho não seja para ofuscar os outros, mas para fazer brilhar outros também. Que outras pessoas também possam ver que é possível. Quando cheguei a essa conclusão, aí eu não tinha mais medo de competir com o Tony Hawk, com o Danny.
Quando você fala sobre esses estudos, são estudos espirituais? Com certeza. Minha mãe é espírita, então sempre tinha O livro dos espíritos em casa. Aí com o tempo eu fui fazendo as minhas buscas. Primeiro tive que aprender a gostar de ler. E, como tudo tava acontecendo em paralelo com essa ascensão no skate, eu buscava justamente respostas para essas perguntas: merecimento, insegurança etc. Foi quando peguei O livro dos espíritos e aquilo me deu uma tranquilidade. Aí eu comecei a ler muitas histórias espíritas, Chico Xavier, histórias psicografadas.
Isso influi no seu skate? Completamente. Primeiro na interação com todo mundo. Às vezes você acredita no que as pessoas falam de você em vez de acreditar em si mesmo. Tenho uma âncora e essa âncora é o pensamento espírita, que me mantém no foco e em cima do skate. Sei que sou material, que sou frágil o bastante e que se eu cair me quebro. Mas acredito muito no carma. É o que mantém a minha mente aberta. Porque, por mais tombos que eu tenha tomado para chegar a esse nível, continuar acreditando que eu posso é mais difícil do que a trajetória toda. O skate é muito psicológico, falo isso sempre.
Perto dos primeiros ícones do skate, você passa uma imagem de bom moço, tranquilo, focado. Você acha que o skate está mudando, deixando de ser, digamos, delinquente? Não... a rebeldia, a delinquência existe sempre. Até hoje, quando vou andar de street e vem um segurança, eu saio correndo e penso: “Tenho 32 anos, sou pai de família, tenho uma esposa em casa com três filhas, e eu aqui fugindo da polícia”. Mas faz parte [risos], e não vou te enganar: me sinto completamente vivo e bem. Acho legal ter essa imagem hoje, de profissional, porque é positiva. Mas o skate nunca vai ser só isso, ele é como um polvo, tem tentáculos. Skate de megarrampa, piscina, street, campeonato, o skate rebelde de invadir as casas. E o skatista tem tudo isso dentro dele, por mais campeão que seja, ele nunca vai esquecer esse lado fundo de quintal, da rua.
E você já foi mais delinquente, então? Putz, já fui muito doido. Meio que vandalizando de skate, peitando segurança, coisa de moleque, bebendo cedo, fazendo merda mesmo.
Usando droga também? Passei por tudo isso, experimentando. A pior coisa que eu fiz acho que foi cheirar. Uma coisa que rapidinho me liguei que era merda.
Mas você teve problemas com pó? Não cheguei a ter problemas. Eu fazia no fim de semana e sempre acabava mal. No dia seguinte ia andar de skate e me fodia. Aí na hora que eu tomava os tombos pensava na noite anterior. Faz ali, paga aqui... E nisso a galera: “Vamos fumar um crack lá”. Tá louco, fumar crack! Então eu já tinha uma noção. Mas você sabe que tá tudo a um passo. Então se você engata, principalmente no pó, vai que vai...
Mas teve alguma coisa positiva em experimentar drogas? Positivo no sentido de aprendizagem. Tipo cogumelo, ácido, você pode até ter algo positivo. Mas se você fi car correndo atrás uma hora vai virar negativo. Porque infl uenciava no skate. Não tem como querer fazer tudo, e eu calculava sempre o skate como mais importante. Lembro uma vez que cheirei a noite toda e fui andar de skate no dia seguinte. Caí, torci o joelho feio. Já era profissional, mas ainda estava entrando na profi ssão. Ao mesmo tempo também estava lendo sobre espiritismo, sabendo que havia outras entidades. Quando rolou isso lembro que entrei no carro pensando só no meu joelho, e eu entrei em uma reza, uma súplica, pedindo desculpa e uma chance, porque eu queria o skate, entendeu? Foi um momento X, um ponto de mutação, porque senão é difícil chegar na hora e dizer não.
E como você comprou esta casa? Foi uma época que eu estava com uma grana do skate entrando. E todo mundo me falava pra comprar uma casa. Aí vi esse terreno aqui, gostei na hora e fechei assim que consegui.
Você estava planejando ser pai? Não. Aconteceu na sequência e foi perfeito. Porque estava com 23 anos, mas eu era muito rebelde, desencanado de campeonato, querendo fazer vídeo e foda-se. Quando a Lótus chegou, comecei a me preocupar mais com dinheiro, com campeonato. Me deu um gás a mais mesmo. Quando virei pai, vi que precisava me profissionalizar mesmo. E foi justamente quando eu fui campeão mundial, em 2000, pela primeira vez. Quando comecei a fazer tudo ao mesmo tempo, vertical, construir rampas, fazer projetos maiores. E ano passado, quando tive a Jasmin, fui campeão de novo.
E você não tem mais medo agora que é pai de três? Na verdade, se eu não faço o que eu faço, não sustento minha família.
Entendo isso, mas no piscológico o fato de você ter uma família que depende de ti não te dá um medo extra? Com certeza. A única vez que pensei que poderia morrer mesmo foi no Grand Canyon, porque incluía o paraquedismo. Nas rampas mesmo posso me estourar, várias coisas podem acontecer. Mas eu nunca fui um cara suicida, independentemente de ter família. O que faço é calcular as coisas com mais certeza.
Mesmo arriscando um tombo cada vez maior? Mas eu sei cair, isso que as pessoas não sabem. Tenho a confiança de que, se me quebrar, vou me quebrar de uma maneira coerente [risos]... Não sei se existe isso, mas em vez de quebrar o pescoço, quebro o pulso. Acho que tenho certa sensibilidade para empurrar o limite, elevando aos poucos. Acho que, como profissional, e com família, penso nas piores hipóteses.
Mas é curioso. Assim que virou pai e passou a se preocupar com segurança financeira, você começou a voar na megarrampa, a saltar no Grand Canyon, a arriscar mais a vida... É, comecei a voar de avião, pular de paraquedas... Sabe o que acontece? Eu quero viver, e pra mim isso é vida. Voar e saltar me faz sentir vivo. Por mais que os outros digam que sou suicida, penso o contrário. A minha profissão é administrar risco, se você parar pra pensar. Mas o risco quase não existe, pra acontecer é uma série de erros. Então nessa administração de risco acabo tendo como sobreviver.
E você tem um projeto novo à la Grand Canyon, um risco calculado que algum leigo chamaria de suicídio? Eu tenho algumas ideias... se eu achar dois prédios gêmeos de uma altura legal... pensar em um salto que envolva bungee-jump... mas são ideias que não necessariamente podem se realizar. Brasília é uma cidade que tenho em mente. Tenho vontade de fazer algo no Brasil com o Danny. Tentar fazer o salto sobre o Monumento da Independência no parque do Ipiranga... Agora estou mais focado em lançar o filme e ver o que vai acontecer.
E você é otimista para o futuro? Porque tem nuvens negras se anunciando... Cara, eu tento olhar o buraco azul entre elas. Por ser brasileiro a gente aprende a ser otimista na pior das situações. E também por ser espírita sou muito otimista. Estou aqui neste momento, com esta missão. Então vamos embora. Se for para atravessar a tempestade, então vamos aí. O importante é a gente saber que ali na frente céus azuis estão por vir. E outra, pelo que eu faço, tenho que ser otimista [risos]. Não posso fazer aquelas coisas se eu for pessimista, né?