Bloody Sunday
O pessoal foi chegando com a cerveja para um dia que prometia ser esplêndido
No domingo surpreendentemente ensolarado da última Páscoa, Xuliquim, paranaense de Assaí e açougueiro da Casa de Carnes Brasil, viu que sobrou uma bela peça de picanha no açougue. Inteirou com 1 kg de calabresa e convidou oito camaradas brasileiros para fazer um churrasco no quintal de sua casa em Harlesden, bairro operário na periferia de Londres. Às duas da tarde, o pagode já rolava alto e o carvão estava tinindo na churrasqueira. O pessoal foi chegando com a cerveja para um dia que prometia ser esplêndido.
Um dos convidados, um motoboy de Cascavel que prefere não se indentificar, encontrou um revólver de plástico no banheiro da casa, um brinquedo do sobrinho do Xuliquim, e o levou para o quintal. Todos brincaram atirando as balas de plástico em latas de cerveja vazias por alguns minutos. Mas logo enjoaram da brincadeira e concentraram-se na farofa e no vinagrete, que estavam saindo no capricho.
Por volta das tantas, logo antes de a carne ficar pronta, acabou a cerveja. Fizeram uma vaquinha e dois dos convidados saíram pra comprar mais. Ao sair na rua, notaram um movimento estranho de carros da polícia e o barulho irritante de um helicóptero que sobrevoava a área. Comentaram que alguma coisa estava acontecendo na vizinhança. Cinco minutos depois, já estavam de volta ao churrasco.
Estavam famintos. Entrou o “Créu” no aipode e Xuliquim tirou a primeira leva de picanha da churrasqueira. De repente, ele teve uma sensação estranha – aquele inexplicável friozinho na nuca que sentimos ao sermos observados pelas costas. Xuliquim instintivamente se virou para o muro e viu a casa cercada por dezenas de policiais armados – contou pelo menos dez franco-atiradores mascarados nos telhados das casas vizinhas. E o helicóptero baixou, ensurdecedor, bem em cima da casa. Na testa de cada um dos convidados brilhava a bolinha vermelha das miras a laser. Rendidos, mãos ao alto, eles ouviram a porta da frente ser arrombada e a casa ser invadida. Os oito brasileiros foram algemados e presos sob a suspeita de serem extremistas muçulmanos.
Operação de guerra
Cerca de 250 policiais entraram em ação na grande operação de guerra daquele fatídico domingo de Páscoa. A denúncia veio de um vizinho neurótico e ignorante que viu um grupo de homens estrangeiros empunhando um revólver e logo pensou que fossem amigos do Bin Laden. Inglês tem pavor de armas. O engraçado é que esse pavor só se estende até as praias da ilha: no ano passado, o Reino Unido foi o segundo maior produtor de armamentos no mundo.
Entrou o “Créu” no aipode e Xuliquim tirou a primeira leva de picanha da churrasqueira. De repente, virou-se para o muro e viu a casa cercada por dezenas de policiais
Mesmo sem ter nada a ver com a Al Qaeda, três amigos do Xuliquim tinham seus vistos vencidos e foram imediatamente deportados. Graças a Deus o bisavô do Xuliquim era italiano e, às 11 e meia da noite, depois de esclarecida a confusão, a polícia o liberou. Ao voltar para casa, Xuliquim encontrou quase tudo detonado. O assoalho estava quebrado, portas e janelas foram destroçadas e a carne já tinha virado cinza na churrasqueira. Provavelmente o brasileiro não será nem indenizado.
De volta ao açougue e com o sorriso de quem até gostou de viver uma cena de filme, Xuliquim declarou, enquanto literalmente enchia linguiça: “Parece que a polícia daqui gosta de confundir brasileiro com terrorista”.
*HENRIQUE GOLDMAN, 47, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br