Benditas águas pútridas
Insatisfeito com sua vida perfeita, nosso herói chafurda na lama em um puteiro barato para sentir-se vivo novamente
O rapaz, nosso herói, foi deixar a esposa e os três filhos na estação Sorocabana para pegar o trem até Resende, onde eles passariam as férias na fazenda de um tio. O rapaz, nosso herói, era engenheiro, diretor de uma firma de construção civil e tirava um bom ordenado. Tinha uma vida perfeita: a esposa era muito bonita e dedicada, as crianças, respeitosas e asseadas. Mas ele vivia insatisfeito – com as notas dos filhos na escola, com o carro que já não era do ano, com o síndico do prédio e com o pouco de celulite da mulher. Mas no fundo tinha raiva da própria imagem no espelho. Ele beijou a mulher e os filhos com frieza e esperou na plataforma, tentando disfarçar a impaciência, até que eles se instalassem no trem. Ao ver o comboio desaparecer atrás da curva da estação, ele já havia decidido que de um jeito ou de outro iria trair a mulher. Agora.
TEATRO DO TESÃO
Procurou um telefone público e ligou para o Anibal, um amigo conhecido desde os tempos de faculdade como rei da putaria. Na repartição pública informaram que o Anibal tinha ido ao velório da madrinha. Nosso herói mordeu os lábios com desespero: tinha que comer alguém imediatamente, antes que o pouco calor do beijo de despedida que dera nos filhos se dissipasse.
Pegou um táxi e se dirigiu à alameda Glete, um renomado reduto de puteiros de baixo nível. No caminho, lembrou-se do sonho da noite anterior. Nele, seu pai o apresentava a um irmãozinho bastardo, mulato. Talvez imbuído dessa imagem percebeu que queria uma mulata. Escolheu na rua uma mulher banguela e pinguça, de pernas flácidas e seios caídos – queria se degradar, comer lixo para sentirse vivo. Levou a prostituta para uma espelunca de pensão e a comeu urrando como um cavalo enlouquecido.
Saiu depressa, com nojo do mundo e de si mesmo. Chegou em casa e foi direto lavar o cheiro fétido de puta que impregnava seu corpo. Passou a noite acordado se atormentando com os gritos fingidos, teatro barato do tesão. Masturbou-se duas vezes, orgasmos rasos e insignificantes que o jogaram em outros abismos sem fim. De manhã enxergou uma forte luz e foi para a estação Sorocabana. Embarcou no primeiro trem para Resende. Saindo de São Paulo, sonhou com o abraço apaixonado que daria nos filhos. Viu-se caminhando no jardim da fazenda de mãos dadas com a mulher, jurando eterno amor. Reencontrou Deus e agradeceu pelas águas pútridas do Tietê nas quais vira e mexe precisava se afogar.
*Henrique Goldman, 46, cineasta paulistano radicado em Londres, acha que Nelson Rodrigues é light para nossos tempos. Seu e-mail é: hgoldman@trip.com.br