Bem-assombrado

Contos do jornalista Humberto Werneck são publicados em livro depois de 40 anos de gaveta

por Redação em

Esta é uma resenha sobre um livro que não existe. Não se encontra nas livrarias, nas bibliotecas ou no Amazon.com. A aparição chegou às caixas de correio de quinhentos afortunados leitores. Cada exemplar, numerado e assinado. Ouço falar desse livro há mais de uma década, quando ainda assombrava a gaveta do meu amigo e professor Humberto Werneck, jornalista tão brilhante e generoso que formou toda uma geração de repórteres "com redação própria", como diz.

Por que então, além da desajeitada homenagem, se haveria de es-crever uma resenha sobre os dez contos maravilhosos de Pequenos Fantasmas se não estarão acessíveis à curiosidade de quem lê o presente texto? Talvez porque, para além (ou o além) do conteúdo, sua simples existência em livro dá uma luz a quem procura um destino e uma profissão nesta vida. Escrito entre as décadas de 60 e 70, com o título de Primeiro Movimento, o livro repousou por até 40 anos antes de vir a – pri-vilegiado – público. Para o não-leitor da obra, aí vão algumas palavras do prefácio assinado por Humberto: "Primeiro Movimento teria saído naquele ano se o jovem contista, tendo descoberto que não era Tolstoi, não houvesse mergulhado numa crise. [...] Desnecessário dizer que a literatura nada perdeu com isso. Mas o autor, sim. A passagem dos anos não atenuou a desconfortável sensação de que, tendo escrito, faltara completar o gesto, publicando aqueles contos de juventude, até como forma de livrar-se deles – para evitar que, na gaveta, ou mesmo rasgados, virassem fantasmas, pequenos fantasmas." [Ivan Marsiglia é jornalista e ex-redator chefe da revista Trip]

Trip
+ Leia um conto do livro Pequenos Fantasmas, de Humberto Werneck.

VAGALUME

Os vagalumes moravam perto da noite, na beira do rio. Pelas seis horas brotavam da neblina e picotavam a sombra num vôo luminoso. O menino havia de esperar, encolhido na moita, para ter o vagalume maior de todos.

— Joaninha, eu queria tanto casar com você.

— Bobo, só gente grande é que casa.

— Então eu quero ficar grande logo, pra casar com você.

(Mas todos queriam casar com Joaninha, e todos traziam coisas: uma pedra rolada do fundo do rio, cigarra seca, maracujá de vez, um tijolinho de argila escrito eu te amo. O menino trouxe uma cobra-coral espetada na vara — e aí Joaninha teve mas foi medo, chorou quase, e o menino nunca mais levou nada pra Joaninha, que era de todos e tão difícil de agradar.)

Casar era ir juntos na mesma casa, sentar cada um na ponta da mesa, vez em quando falar umas coisas, visitar os parentes depois da janta. O homem: sair para o trabalho, fumar na janela, dar alpiste pros passarinhos, dizer: está precisando chuva. A mulher: preparar a comida, costurar na porta da rua, ajudar nos velórios. De tempo em tempo, nascer um irmãozinho na barriga da mãe.

Uma coisa que ele não entendia inteira: como é que os filhos? Tudo o que sabia era aos pedaços, umas coisas que não combinavam com as outras, terríveis, retalhos de mistério grande. Os meninos falavam: é assim, sabe? — mas desse jeito não podia ser, tão esquisito que era. Uma vez ele quase ficou sabendo de tudo, foi quando a irmã no buraco da fechadura:

— Mãe, a Mercês tem pinto não?

— Meu São Geraldo! Quem te falou, gente?!

Será que a mãe não sabia? Era pecado, do jeito que a mãe falou devia de ser pecado. E o mistério ficando, remoendo. Na hora do banho o menino pegava lá nas coisas dele, lembrava dos amigos e da Mercês e pensava Joaninha como é que devia de ser, era pecado. Uns tinham falado: é a cegonha que traz, seu bobo. Os meninos sabiam, entendedores. No confessionário não tinha coragem de perguntar. De noite, ajoelhado na beira da cama, abria os braços feito cruz, igual o padre tinha ensinado pra espantar mau pensamento, e rezava com força, bendi teu fruto vossoventre Jesus, pra não pensar naquelas coisas. A cabeça tinha de pesar de sono para ele se enfiar nas cobertas, um sono fofo que subia dos pés, até dormir um sonho de Joaninha e ele, cada qual na ponta da mesa.

Um dia

— Joaninha, eu trago tudo que você pedir.

ela pediu:

— O maior vagalume do mundo, pra iluminar nos pés da Santa.

Os passarinhos voavam todos na mesma hora, puxando no bico a coberta da noite. Hora dos bagres, a neblina começando a subir, devagarinha. Olhos acesos, o menino esperava. De repente, lá longe, um vagalume dava o primeiro sinal, experimentava a bundinha — e aí centenas de fagulhas se acendiam se apagavam, se acendiam se apagavam, o vôo levantado da fumaça do rio.

Esperava. Era preciso deixar que descessem a seu lado, nas folhas do assa-peixe. A mão em concha, bastava um gesto rápido e as frestas dos dedos piscavam amarelas, pedindo socorro.

O maior vagalume do mundo, pra iluminar nos pés da Santa, no quarto da Joaninha. Como é que era Joaninha, com as coisas dela? Joaninha na janela da rua, ele passava do outro lado, olhando a poeira do chão, cadê coragem pra levantar a vista? E os meninos em volta, na porta da matinê, saída do catecismo, em toda parte. No catecismo Joaninha não sabia nada, ficava o Juca explicando as respostas, ensinando até ave-maria e o padre-nosso. O menino, de noite, estudava no livro de reza e tinha vergonha de não saber como é que as pessoas nasciam.

Um arrepio quando pensou: e se morresse ali, na beira do rio, picado de cobra, ou afogado? Não o encontrando na pracinha com os amigos, o pai e a mãe sairiam de casa em casa. De madrugada o corpo desceria até a ponte. No enterro, ele de branco, boca arroxeada, sufocado no meio das flores, Joaninha é que haveria de chorar mais do que todos, de arrependimento: ele ia trazer pra mim o vagalume maior do mundo!

Um golpe de mão e o vagalume ficou preso — aí pelo quinto ou sexto que pegava, todos miúdos. Um maior havia de vir.

E, súbito: no meio da folhagem, imenso.

Caminhava depressa, os dedos cerrados com força. O bichinho arranhava, cosquinha dura na palma da mão. O coração batia com algum medo, piscava, luz de vagalume no peito dele. Joaninha, toma, eu trouxe pra você! E ela toda contente ia buscar o vidrinho lá dentro. Joaninha, agora deixa eu casar com você, quando a gente for gente grande?

Pedalava a escuridão. Entre as moitas, um barulho. A hora dos bichos maiores, ui. As casas ficavam perto, logo adiante, mais um pouco e ele chegava. O barulho de novo. Amaciou o passo, foi se aproximando. Voz de gente! de mulher gemendo baixinho ai ai ai, de homem falando grosso, arranhado. O menino primeiro adivinhou, afastou depois um galho, então viu, e o coração descompassou, e o menino viu de novo, enquanto o barulho calava, calava. Os dedos se abriram sem querer, o vagalume escapuliu noite adentro.

                                                          Belo Horizonte, 1966
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