Axé virtual
Na relação homem com a internet, um pouco mais de energia, mistério e ritmo não faria mal nenhum
POR CARLOS NADER* ILUSTRAÇÃO JULIEN PACAUD
A palavra “axé” tem vários significados. Um deles, mais conhecido, é “energia”. Um outro, quase secreto, parece oposto ao movimento corporal e cultural bastante sonoro que leva o nome de “axé music”. A bela palavrinha ioruba também significa “segredo”, conforme me disse baixinho uma vez em Salvador mãe Stella de Oxóssi, uma das maiores autoridades do candomblé no Brasil. Axé é o segredo mais essencial. É o Mistério, com M maiúsculo, em torno do qual gravitam as religiões, as filosofias, as vidas. Para a tradição nagô, a existência humana é algo que a todo instante se equilibra na interação entre o que se chama de aiyê (este mundo, a vida cotidiana, o “tudo”) e o orum (o além, a morte, o “nada”). O axé é justamente essa interação, esse equilíbrio entre os dois mundos. É um equilíbrio dinâmico, em eterno movimento: um ritmo. Então é este o segredo do segredo: axé é de fato um ritmo. Não só o do rebolado do Chiclete com Banana. É o ritmo primordial, o ritmo de todos os ritmos.
QUADRIL ELÉTRICO
E ritmo é energia. Da corrente elétrica alternada da tomada ao quadril elétrico alternado da mulata, é sempre a diferença entre dois estados que produz energia. O som e o silêncio. O objeto e o vazio. A vida é regida pela interação entre dois planos, dois mundos, a toda hora. São vários e variados os exemplos. Para os seres humanos, a interação equilibrada entre o sono e a vigília é fundamental. Na informação eletrônica, a mera alternância entre o zero e o um constrói um universo inteiro, que chamamos de internet e que a cada dia engloba mais coisas, desde aquilo que entendemos por ambiente de trabalho até o panteão mitológico da mídia televisiva.
Há algo na existência da gente que replica em todo canto esse diálogo seminal entre o repouso e a ação. E há também uma equação simples que diz que quanto mais intenso e equilibrado é esse diálogo mais intensa e equilibrada será a vida. Tanto no repouso quanto na ação. Pois a equação deveria também valer para a própria relação dos seres humanos com a informação eletrônica, que talvez seja a forma de interação mais relevante e menos pensada da atualidade. Já disse e repito: do mesmo jeito que consideramos vital a divisão entre o tempo que passamos dormindo e aquele em que estamos acordados, deveríamos ficar bem mais atentos à alternância dos momentos em que estamos ligados e desligados do plano eletrônico.
Responder àquele e-mail urgente. Dar um Google naquela doença que afetou um ente querido. Skypear por horas o amigo que mora em Londres. Ser skypeável em qualquer lugar. Poder trabalhar no sítio. Estender o horário de trabalho para a madrugada em casa. Não perder a entrevista na TV a cabo com aquele escritor angolano. Sair sem celular. Sair com celular. Não dá para dizer que nenhuma dessas coisas é inerentemente boa ou má. A maneira pela qual as fazemos, a energia que colocamos nelas e a energia que elas colocam em nós é.
Não sou nenhum sábio do Butão, mas me parece óbvio que seremos mais felizes à medida que conseguirmos dosar, com ritmo e graça, nossa relação com o universo que as possibilidades eletrônicas nos oferecem. Entrando na dança e saindo dela quando nos convém. Lembro que, nos primórdios da internet, Jaron Larnier , um pioneiro americano pensante, disse que faltava África nos computadores. Ele achava que o fato de a tecnologia ser criada por nerds brancos do Vale do Silício deixava a relação entre o homem e o computador restrita ao eixo que ia do cérebro até a ponta dos dedos. O resto do corpo era inteiramente esquecido. Do mesmo modo, hoje, eu acho que, na relação do homem com a internet ampla, um pouco mais de axé não faria mal nenhum.
*Carlos Nader, 43, é um homem de mídia sem preconceitos, mas nem por isso tem a coleção completa da Ivete Sangalo. Seu e-mail é carlos_nader@hotmail.com