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Autofalante

Só há duas certezas nesta vida. Uma é a morte. A outra é que a Marília Gabriela vai pedir ao entrevistado uma frase de efeito no fim do programa. E, há um mês, a frase da terapeuta e escritora de livros “motivacionais” Ana Sharp veio na forma de pergunta: “Na hora de um atrito, você prefere ter razão ou ser feliz?”. E logo respondeu, ela mesma, para uma Gabi toda ouvidos: “Busco a felicidade. Abri mão da razão”.

A auto-ajuda raramente fala em “razão”. Costuma falar em “fé”, “sonho”, “universo”, “poder”, “dinheiro”, “caminho”, “Santiago”, o que deixa claro que é uma forma light de religião, mesmo quando não envolve Deus diretamente. Seus mandamentos têm uma sabedoria simples. Às vezes, é verdade, acompanhada por uma dose generosa de cafonice, sem o menor medo dela. O que sempre é admirável. Ten­do a gostar de muitos desses mandamentos, sem preconceito. E sem grandes entusiasmos também. Achei a frase interrogativa de Sharp ótima e péssima. Ótima, porque lembra que boa parte dos conflitos do mundo pode ser resolvida só com uma respiração mais profunda. Péssima, porque pensa, sem razão, que consegue atacar a razão.

Nosso caso não tem solução


A pergunta e sobretudo a auto-resposta da autora querem contrapor a felicidade e a racionalidade. Mas a quem em última instância é endereçada a pergunta? Agora auto-respondo eu, com a auto-ajuda de mim mes­mo: a pergunta é feita à própria razão. Não é algum cara ou coroa cósmico que decide se vale mais a pena “ter razão ou ser feliz”. É a própria razão. Mesmo que a razão decida pela felicidade, ela também estará ne­ces­sa­riamente decidindo por si mesma, já que se trata de uma decisão ra­cional. Ela prevalece. Não faz sentido opor razão e felicidade. Aliás, não consigo pensar em nada mais racional do que tentar ser feliz. Supor que o caminho da felicidade passe pela desistência da razão me lembra outra frase, do H. L. Mencken: “Para cada problema da humanidade existe uma solução simples, clara e errada”.

Preferia não ter implicado com a pergunta de Ana Sharp. Achei a escri­tora inteligente, engraçada, corajosa. E, como já disse, há um lado muito interessante na própria pergunta. Mas acho que vou ser mais feliz implicando. Mesmo que a “razão” que a terapeuta combate fosse só um sinô­nimo de “teimosia”, estaríamos correndo perigo. Abrir mão de “ter razão” pode significar sabedoria. Tomado como regra, porém, significa corrupção, um “deixa pra lá” generalizado que é a cara do Brasil de hoje. O pior é que a “razão” desprezada pela terapeuta é sinônima de “racio­na­lidade” mes­mo. Nem precisava tê-la ouvido dizer “abri mão da razão”. Não é de hoje que a racionalidade é vitima de ataques estapafúrdios de certa religiosidade, do fundamentalismo de Cabul ao misticismo do Le­blon. Mesmo que haja sempre uma lógica aguda no que sai pela boca de Jesus, de Buda ou de um filósofo sufi, alguma força estranha, esta sim, motiva muitos segui­dores religiosos a dedicar uma vida inteira a combater a razão.

É a razão que me faz ir à aula de ioga. É a razão que me leva a desligar a razão, quando medito. E claro que a razão também merece ser criticada ou autocriticada. Claro que o último grande projeto do racionalismo, aquele que começa no Iluminismo e desemboca no aquecimento global, tem aspectos pavorosos. Qual é a raiz do desequilíbrio ambiental e espiritual inegável que vivemos? A que se deve
a irresponsabilidade produtiva que os religiosos irracionais creditam a um “excesso de racionalismo”? Será que não se deve justamente a momentos desse projeto em que a razão mais básica, aquela que vê na felicidade o único sentido da vida, é eclipsada pelos impulsos mais básicos, aqueles de luta por poder, dinheiro ou fé?

Assim encerraria a entrevista à minha Marília Gabriela interior. Mas o tema desta Trip é “teto”. Não esqueci. Trilhei esse caminho porque moro na filosofia. E acho que seremos mais felizes conforme a razão nos sirva de abrigo coletivo, independente de classe ou cor, raça ou credo. Sei que ela é frágil, vulnerável às intempéries cíclicas do irracionalismo. É um teto de vidro. Não conheço nenhum mais lúcido, nenhum mais translúcido.

*Carlos Nader, 43, homem de mídia, é um homem razoavelmente racional. Seu e-mail é: carlos_nader@hotmail.com

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