Até o fim

O colunista às voltas com os jovens do bairro e, consequentemente, com as agruras que acometem a vida periférica

por Luiz Alberto Mendes em

Preciso, a todo momento, provar a mim mesmo que não há nada a temer. Que sou forte e tenho a alma animal. Vivi tantos anos sendo desvalorizado, minimizado, que careço de me convencer, a cada desafio, que sou capaz de encarar. E mesmo que tenha dúvidas, enfio os peitos. Quebro a cara constantemente, é preciso dizer. Mas, na minha idade e com minha experiência de vida, tenho afinado minha sensibilidade e aprendido a amenizar esses prejuízos. Então não me machuco excessivamente jamais.

Bem, não até agora, já que o futuro é apenas um conjunto de instantes vividos até lá... Estou procurando me manter preparado para o pior também, embora lute desesperadamente pelo melhor. Ainda sou desses idiotas que acreditam que é possível ser feliz, e mesmo que infeliz, ainda assim vale a pena. Fernando Pessoa captava o espírito da vida ao dizer: “Tudo vale a pena, quando a alma não é pequena”.

Às vezes a substância líquida e insossa da vida me assusta. Não sei mais se sou um homem tecendo minha vida, ou se é o artesanato da vida me entrelaçando em seus fios tênues. Andei muito preocupado estes últimos dias. Estive sendo requisitado para opinar e debater em todo tipo de veículo de comunicação. Falando, escrevendo e me expressando de todas as formas possíveis, procurei emitir conclusões de anos de estudo, reflexão e vivência com toda ponderação de que sou capaz. A par disso, fiquei conhecendo um grupo enorme de jovens aqui no bairro encostado ao que moro.

Conhecer pessoas é meu grande barato. Aos poucos, fui conquistando confiança e amizade. Em princípio, eu era uma curiosidade para eles. A criminalização dos jovens na periferia é um processo lento, mas progressivo. A luta para conseguir um emprego é de foice no escuro, por mais chavão que soe. Não há trabalho para quem ingressa no mercado de trabalho agora. Claro, sempre há o “quebra-galho”, o “bico”, e é disso que eles vivem.

O “beck” sempre aparece, é inevitável. É quando, ali unidos na roda de amigos e iguais, amortecem suas tristezas, preocupações, frustrações e se divertem entre si. Quase todos se conhecem desde criança. As meninas, quase todas, já são mães, e algumas de mais de um filho. Brincam, namoram entre crianças e adultos, perdida que foi a adolescência.

Andam, notívagos, pelos bairros circunvizinhos, em busca de outros grupos de jovens. Quando se encontram, é uma festa. Beijos, abraços e fortes apertos de mão. Ninguém tem nenhum tostão no bolso, mas o “beck” aparece como que por encanto. Sei como, por isso falo em criminalização do jovem da periferia. Vaguei com eles algumas noites insones.

O mundo ameaçava me engolir com excessos de atenções. Aquilo me desfocava, causando angústia. Uma palavra minha mal colocada poderia causar estragos. Enquanto as prisões tremiam, rebeladas, meu coração ficava pequeno. Às vezes surgia sensação de estar lá, esperando a PM entrar dando tiros ou batendo. E eles viriam na febre dessa vez, em busca de retaliação.

A guerra aqui fora me deixava sem saber o que pensar. Será que todo mundo havia enlouquecido? As ruas desertas me comunicavam pânico. Aquilo parecia quando ia morrer alguém assassinado na prisão. O clima da morte encharcava todos de gravidade. Quase ninguém falava e todos tensos.

Então uma das garotas se aproximou mais de mim. Sua intenção era pedir que eu ajudasse sua amiga. Eu a conhecia e não havia percebido. A garota estava no olho do furacão, como eu estive inúmeras vezes. Contou-me com a voz sumida e quase sussurrante. Tinha três filhos. Moravam com os pais. O pai das crianças estava faltando com a pensão há três anos. A mãe queria colocá-la para fora de casa com as crianças. Motivos? Nem sei se há motivos para que pais coloquem seus filhos para fora de casa, com filhos pequenos e sem recursos sequer para sobreviver.

Sim, ela gosta da gandaia. Ama sua liberdade. Quer ficar à noite andando com seu grupo de amigos. E, pior, estava grávida de um namorado que não sabia se a queria de fato. Queria abortar. E agora? O que eu poderia fazer com uma situação dessas? Fui acometido por uma doçura tão grande por aquela mulher, que ficou insuportável.

Sou pobre. Vivo do que escrevo, vendendo meus livros nas palestras que sou convidado a fazer. Só não sou insensível. Então só havia uma saída. Eu pagaria o depósito do aluguel da casa que ela e as crianças careciam. Compraria fogão, camas, colchão e mantimentos para um mês.

Seria um sacrifício. Precisava comprar roupa de verão para meus filhos, fiquei preocupado. Mas não consegui ficar indiferente e muito menos omisso diante da gravidade dos fatos. Compreendo a morte, é até fácil, a natureza ensina. Mas o nascimento e a vida estão além da minha capacidade de compreender. Lido com fatos, efeitos, nesse caso, e reverencio a vida como Albert Schweitzer.

A pressão sobre mim vai se escoando e volto a viver na bendita obscuridade novamente. As pessoas não queriam acreditar, mas o que aconteceu nessa semana de terror em São Paulo era previsível sim, e muitos alertaram, inclusive eu. A bomba que foi jogada no ar não iria virar pombo e sair voando. Cairia e com absoluta intensidade. E caiu.

Hoje cedo a garota veio aqui em casa me procurar. Estava feliz. Havia procurado o pai da criança que iria gerar e este acolhera com alegria a notícia. Quer que ela vá morar com ele, junto com seus filhos. Senti alívio. Tirei peso enorme de sobre meus ombros. Sabia que o que iria fazer não se sustentava no tempo. Não tenho condições de arcar com outra família. Fiquei feliz comigo mesmo sem ter feito nada. Sabia que faria e até o fim.

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