Anonimato nunca mais

O culto à identidade está levando a uma onda de apps que permitem interações anônimas

por Ronaldo Lemos em

Houve um tempo, nos primeiros anos da internet, em que estabelecer a identidade de quem estava na web era praticamente impossível. Naquele momento, mulher podia dizer que era homem, adolescente dizer que era adulto, gente de um lugar dizer que era de outro. A internet era um território coletivo de experimentação de identidades. Se antes dela só poucas pessoas brincavam com suas identidades (como os atores e os boêmios), a internet disseminou essa experiência de “ser outro alguém” para as massas e flexibilizou as identidades, que passaram a se tornar fluidas como a informação.

Nesses primórdios, ainda fazia sentido o cartoon de Peter Steiner publicado pela revista New Yorker, em 1993, que mostrava um cachorro teclando no computador enquanto a legenda dizia: “Na internet, ninguém sabe que você é um cachorro”. A rede dos dias de hoje é muito diferente. Ela estabeleceu um culto à identidade. A maior parte das interações passou a ser mediada não mais pelo anonimato, mas por avatares que se confundem com quem realmente somos. Os espaços para interações anônimas ainda existem, mas são cada vez mais marginais. 

O grosso das interações on-line de hoje depende de reafirmar infinitas vezes quem somos. Tudo gira em torno da projeção da nossa identidade, que se tornou a unidade básica de organização da informação no mundo de hoje (até para recebermos anúncios “personalizados”). Não é por acaso que as grandes empresas da rede exijam que você utilize seu próprio nome. Quem vive com uma identidade alternativa no mundo “real”, como cosplayers ou transgêneros, já encontrou problemas com essa política – muitos tiveram contas suspensas nas redes sociais. 

É claro que a afirmação da identidade na rede trouxe inúmeras vantagens. Tornou a internet um lugar mais “familiar”. Também transformou a rede em um ambiente mais propício a negócios e a atividades “sérias”. A boemia e o comportamento dândi foram ficando de lado. As pessoas passaram a ter reputações on-line a zelar. Claro que isso é positivo e ajudou a ampliar o alcance da rede. Mas muita poesia foi também perdida nesse processo. Personas fictícias na rede eram capazes de despertar amor, ódio, admiração, repulsa, tal como uma peça de teatro coletiva e espontânea. Tudo isso livre das limitações intrínsecas da identidade. Um exemplo foi a febre dos perfis fakes no finado Orkut. Vários tinham popularidade gigantesca e criavam novelas épicas: narrativas inventadas coletivamente junto com quem interagia com eles. 

SECRET E WHISPER

O excessivo culto à identidade na rede está agora levando a um refluxo. Há uma onda de novos aplicativos e empresas buscando promover novamente interações anônimas. Os exemplos são vários: Secret, Whisper, Anonyfish. Há rumores de que o próprio Facebook está para lançar um aplicativo anônimo, construindo um novo território onde não exigirá que as pessoas usem o nome verdade. 

Mas esse refluxo será só uma gota no oceano da rede. A internet de hoje e do futuro é uma rede onde não há mais espaço para personas. Ao contrário, a rede tornou-se o espaço da vigilância perfeita e do controle. Mesmo que alguém crie uma persona para atuar digitalmente nos dias de hoje, pode ter certeza de que em algum lugar haverá quem saiba quem você é, e que monitora em detalhes a pessoa por trás da máscara. O cartoon de Peter Steiner precisa ser atualizado. Agora sua legenda precisa dizer: “Na internet de hoje, alguém sempre saberá que você é um cachorro”

*Ronaldo Lemos, 38, é diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITSrio.org) e apresenta o programa Navegador na Globonews. Seu Twitter é @lemos_ronaldo

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