Anonimato é pra quem pode
Famosos contam a dor e a delícia de nunca mais passar despercebidos
Fama é só o outro nome da solidão
Por José Arbex Jr.
“No futuro, todos serão famosos durante 15 minutos”, sentenciou Andy Warhol, o homem que massificou a pop art, com seus famosos cartazes que reproduziam as latas de sopa Campbell, a garrafa da Coca-Cola e o rosto de algumas das personalidades mais conhecidas do mundo – de Marilyn Monroe a Che Guevara, passando por Pelé. Não por acaso, justamente o profeta do efêmero, do fútil e do banal elevados à categoria de obra de arte diagnosticou, com precisão, um dos traços mais marcantes da cultura contemporânea: a busca incessante da fama, a fascinação dos holofotes, o desejo de subir ao pódio. Ser famoso é preciso, ainda que isso signifique expor os sentimentos e a vida privada aos olhares insaciáveis de multidões, como fazem, por exemplo, os integrantes dos reality shows que se multiplicam nas principais emissoras do país.
A indústria da fama é inesgotável, e pode ser medida pelo número de revistas expostas em bancas que se dedicam à atividade vampiresca de explorar a vida das celebridades. O que elas fazem no dia a dia? Onde almoçam e jantam? Com quem namoram ou vivem? Onde moram? Quais os seus locais preferidos de passeio? Para qual time torcem? O que pensam dos temas polêmicos do momento (direito ao aborto, casamento gay, ataque ao Irã e qualquer outra coisa que sirva para alimentar a fofoca, o imenso e inútil ruído diário produzido por esse monstro chamado “meios de comunicação de massa”)? Lady Di talvez seja o ícone mais significativo dessa indústria: morreu ao tentar escapar à fúria dos paparazzi que queriam uma foto sua ao lado do namorado milionário egípcio. O seu funeral foi encenado como o último ato de uma peça que tinha o planeta inteiro por palco. Rendeu bilhões às indústrias da publicidade e do turismo.
Mas o desejo de fama, por si, está muito longe de ser uma característica exclusiva do mundo contemporâneo. Ao contrário, parece ter acompanhado a humanidade em todos os momentos de sua história. A novidade é a dimensão que ele atingiu, graças ao vertiginoso desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação de massa, que unificam virtualmente o planeta em redes sociais e mecanismos instantâneos de troca de informação, e graças à atmosfera política, ideológica e cultural da época chamada pós-moderna. Esse último aspecto merece uma explicação um pouco mais detalhada.
O “desejo de fama” foi documentado de forma muito clara na Atenas clássica, quando os homens livres que participavam do debate público queriam se tornar conhecidos pelos seus feitos em prol da polis – a cidade, a representação do bem comum. Imaginavam para si uma vida cheia de glórias, mais ou menos como no caso de Ulisses. A vida privada não se misturava com a pública. Ao contrário, na vida privada os homens lidavam com as questões básicas da sobrevivência: os cuidados do corpo, da alimentação, a satisfação das necessidades. As mulheres, as crianças e os escravos pertenciam a essa esfera. O Império Romano herdou o fundamental dessa tradição: os assuntos de Estado eram os que importavam aos homens públicos.
O cristianismo, tornado religião oficial do Império Romano por Teodósio, no século 4, mudou esse quadro. Durante os mil anos de Idade Média – a dominação da igreja católica sobre aquilo que hoje conhecemos como Europa –, a virtude dos homens públicos (reis, príncipes, nobres, magistrados) confundiu-se com as suas qualidades na vida privada. Seria considerado um bom governante aquele que adotasse os mandamentos católicos, incluindo a fidelidade conjugal, a prática da caridade etc. Esse quadro começou a mudar apenas com o advento do Renascimento e o surgimento de autores como o florentino Nicolau Maquiavel (1469 – 1527) e o inglês Thomas Hobbes (1588 – 1679), que finalmente separaram a esfera pública (o mundo da política, a arte de governar) das convicções morais e religiosas das pessoas que ocupavam postos nos governos. Enfim, no século 18, as revoluções burguesas (em particular a de 1789, na França) liquidaram o que restava do mundo feudal e possibilitaram o surgimento de um novo tipo de sociedade, em que a vida pública estava novamente separada da privada.
No mundo burguês (o nosso mundo), a vida pública era ou deveria ser regida pelo contrato social (as constituições, as leis, as normas), que assegurararia o exercício das liberdades e dos direitos fundamentais dos indivíduos, ao passo que a vida privada seria dedicada aos interesses, planos e ambições pessoais. Entretanto, com o passar do tempo, a vida pública começou a perder o sentido: após a eclosão das guerras mundiais, do terror stalinista na antiga União Soviética, do holocausto nazista, das bombas de Hiroshima e Nagasaki, da Guerra Fria e após os incontáveis milhões de mortos em guerras estúpidas, a atividade política parece incapaz de assegurar um mundo melhor. Essa época sem perspectivas, de perda de fé no futuro, é o que se convenciona chamar “mundo pós-moderno” e é o que explica o imperativo absoluto da fama.
Se eu não acredito mais que o mundo possa mudar para melhor, se o amanhã só vai trazer mais guerra e destruição, se o que resta para a humanidade são a tristeza e a desolação, a única coisa que posso fazer é cuidar de mim, dos meus interesses, da minha vida, do meu mundo, da minha sobrevivência nas próximas 24 horas. E, para isso, eu tenho que ganhar visibilidade, aceitação, prestígio, poder... e fama! Claro que não é assim que as coisas funcionam na cabeça de cada um, individualmente. Ninguém, ou quase ninguém, articula planos para ficar famoso com o objetivo de garantir a própria sobrevivência. Mas o que move as pessoas, mesmo que elas não saibam disso, é uma lógica social e cultural que é a da sobrevivência a qualquer custo, num mundo cada vez mais predador e competitivo.
A indústria cultural aproveita esse sentimento e projeta celebridades instantâneas com duplo objetivo. Por um lado, alimenta a permanente ilusão de que “você também pode chegar lá”. Por outro, estimula a identificação do ser anônimo com “sua” celebridade preferida (mais ou menos como alguém se identifica com determinada personagem de telenovela), com o objetivo de vender produtos que teriam o dom mágico de transformá-lo em alguém parecido, ou que poderia viver no mundo da celebridade que você gostaria de ser (beba a cerveja x, use a camisa y e dirija o carro z que tudo vai dar certo na sua vida). A busca da fama, portanto, aparece como uma condição vital para bilhões de seres humanos que perderam a confiança em laços de solidariedade que podem transformar a vida. É o mergulho desesperado na própria solidão. É a explicitação da miséria afetiva. É a transformação da própria vida em mercadoria.