Ame-o ou deixe-o?

A questão sobre ficar no Brasil ou ir embora, hoje, tem um viés puramente econômico

por André Caramuru Aubert em

Diferentemente da época do Regine Militar, a questão sobre ficar no Brasil ou ir embora, hoje, tem um viés puramente econômico. Na prática, é uma opção real apenas para os ricos ou bem formados

Antes de mais nada, devo confessar que o tema desta edição da Trip me causou certo incômodo. Talvez por me fazer lembrar dos meus anos de infância, quando o governo do sombrio general Médici, enquanto prendia, torturava e fazia desaparecer pessoas, proclamava, naquela campanha da qual jamais me esquecerei: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Crescendo sob aquele clima, ficou difícil discordar do escritor Samuel Johnson (1709-1784), que dizia que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas.

O “Ame-o ou deixe-o” de Médici tinha um significado ideológico, e da pior espécie: que permanecessem no Brasil os que apoiavam o regime militar; que saíssem (por bem ou por mal, vivos ou mortos) os que se opunham. Os tempos mudaram: ficar ou ir embora, hoje, tem viés puramente econômico. Na prática, é opção real apenas para os ricos ou bem formados, como para aquele banqueiro que, após tentativa de sequestro contra seus filhos, fez as malas e se mudou, com a família, para a Europa. Mas se você for pobre, emigrar é tornar-se o estrangeiro mais desprezado, aquele que vive de bicos ou empregos subalternos num país de língua estranha, com vizinhos de olhar desconfiado e com a polícia sempre pronta a extraditá-lo pelo menor dos motivos. Os transnacionais banqueiros Rothschild já haviam evidenciado, e Marx explicou: o trabalho tem pátria, o capital, não.

Meu pai viveu o dilema da troca de país: ele foi um imigrante atípico, pois veio para o Brasil sem nenhuma vontade. A Europa do pós-guerra estava destruída e em crise, e meu avô, com sua editora na Suíça à beira da falência, decidiu mudar radicalmente de vida. Meu pai, que estudava para ser artista plástico, só veio junto porque não viu como (emocional e financeiramente) ficar sozinho em Genebra. No Brasil, ele teve que se enquadrar, tornando-se funcionário de empresas multinacionais, até o dia em que criou coragem e largou tudo para tentar viver apenas de arte.

Com o tempo, a Suíça se recuperou e o Brasil jamais daria a meu pai a possibilidade de viver, dignamente, apenas de suas pinturas e esculturas. Amigos dele na Europa chegaram ao fim de suas vidas cercados de conforto material e reconhecimento público. Meu pai, não. Mas, já adulto, dois casamentos e dois filhos, voltar para a Suíça não era opção viável. Apesar da frustração com sua carreira, ele acabou gostando daqui, da cultura, da arte, da natureza, da cordialidade. No Brasil ele foi sepultado (era um pintor concretista que adorava literatura de cordel e os bonecos de Mestre Vitalino; um fanático por Bach e Beethoven que me apresentou o LP London, London, de Caetano).

Sem Patriotada

Desde que meu pai desembarcou em Santos, nos anos 1950, muita coisa mudou. O Brasil evoluiu de maneira espetacular; milhões de pessoas ganharam acesso à saúde, à educação e ao mercado de consumo. Nossa economia se tornou complexa e diversificada. Por outro lado, há problemas gigantescos, que sucessivos governos (e a sociedade) têm enfrentado mal: nossa democracia é real, mas pouco representativa; a desigualdade é enorme; o Estado é pesado e caro; a infraestrutura está subdimensionada; há disparidade crescente entre o consumo que sobe e a produtividade que desce; a qualidade da educação é piada de mau gosto; temos um desprezo atávico pela finitude dos recursos naturais. E a lista seguiria...

Será então o caso de ir embora? Na maior parte das vezes, apenas se você estiver disposto a ser entregador de pizza em Boston ou ajudante de pedreiro em Londres. Se não for esse o plano, o melhor é ficar por aqui, tentar aproveitar o que existe de bom e ajudar a consertar o que não está funcionando. Mas sem patriotadas. “Brasil, ame-o ou deixe-o” não era frase para se levar a sério em 1970, e segue não sendo hoje.

*André Caramuru Aubert, 50, é historiador, editor e autor do romance A vida nas montanhas. Seu e-mail é andre.aubert@hotmail.com

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