Ai, meu cotovelo!

Por que a maioria das músicas de amor é sobre... o fim do amor?

por Marcus Preto em

Por que a maioria das músicas de amor é sobre... o fim do amor? Artistas veteranos e da nova geração discutem por que ciúme, brigas e separação estão entre os melhores ingredientes de uma boa canção

Quando Caetano Veloso mostrou, ao violão, uma das músicas que tinha composto para o disco que estava fazendo, Jorge Mautner teve uma crise de choro. Aquela era uma das mais belas canções de amor que já tinha escutado na vida. Gostava principalmente do refrão, quando a melodia ficava mais tranquila e terna, e a voz repetia, num veludo: “Odeio você, odeio você”. Quem narra o episódio é o próprio Caetano – mas Mautner confirma tudo, palavra por palavra. A canção “Odeio” foi gravada no álbum  (2006) e é, desde o nascedouro, um clássico do nosso cancioneiro amoroso. Segundo Mautner, dizer “odeio você” é a maneira mais próxima que há de dizer “amo você”.

m música é assim. Canções de amor são, quase todas, canções de desamor. De fim de caso, de dor de cotovelo, de separação, de traição, de ódio. No Brasil, essa regra é levada à risca desde os primórdios, na Era do Rádio, até a produção mais recente da música pop. “A gente não pode falar em música sem falar em comportamento: o que acontece na sociedade se reflete imediatamente no repertório dos cantores”, diz Rodrigo Faour, autor do livro A vida sexual da MPB.

“Até a década de 60, os papéis masculino e feminino eram muito demarcados. A mulher tinha que servir ao homem. E, como a maior parte das pessoas que escrevia música era homem, tudo era visto sob a ótica deles. Por isso todas as letras falavam de amores fracassados – e esse fracasso era sempre por culpa de uma mulher ingrata”, afirma Faour. “Os seresteiros só amavam as mulheres antes de ter contato real com elas – amavam só uma idealização. Depois de realizado, elas viravam o diabo de saia.”

 

"Eu não quero mais nada, só vingança, vingança, vingança, vingança" Vingança, Lupicínio Rodrigues

 

São dessa época muitas das canções de Lupicínio Rodrigues, que não só assina inúmeras letras sobre a amargura da separação – em geral, amaldiçoando as ingratas que lhe fizeram sofrer – como teria sido o inventor do termo “dor de cotovelo”, em referência aos que cravam os cotovelos em um balcão ou mesa de bar, pedem suas doses e desfiam seu rosário de desilusões. Não surpreende, portanto, que dos dez artistas ouvidos pela Trip para que escolhessem suas músicas de separação preferidas, três tenham votado em criações de Lupe, como era conhecido (veja a lista no fim desta reportagem).

Mas, claro, as mulheres também versavam sobre corações quebrados. Dolores Duran, por exemplo, era amiga próxima de Maysa – a autora de versos de desamor desesperado como os de “Meu mundo caiu”, clássico da fossa nacional. Mas, como aponta Faour, Dolores era, na verdade, “uma mulher alegre que escrevia ‘porrada’, por isso era mais irônica do que a Maysa”. Em seu universo, o amor estava no fim, mas vinha temperado de uma tiração de sarro, em versos do tipo: “Se é por falta de adeus, vá embora desde já” e “Eu desconfio que o nosso caso está na hora de acabar”.

Só no xaveco

Claro que esse combustível – o desamor – era também o que movimentava a música internacional naquele período. A diferença fundamental, no entanto, era que os temas escritos por Cole Porter, Irving Berlin, George e Ira Gershwin e outros nomes essenciais do cancioneiro americano compunham roteiros de peças musicais. Havia conflito amoroso, é claro. Mas o final feliz estava garantido. O Brasil, todavia, não tinha a cultura dos musicais desenvolvida. Nossas canções não falavam sobre personagens, e sim sobre nós mesmos. Serviam para expressar o sofrimento causado por nossas desilusões amorosas. E para buscar uma cura para elas.

A bossa nova chegou para mudar tudo isso. Ou uma boa parte. Em 1958, João Gilberto apareceu com uma maneira leve de interpretar as canções. O repertório escolhido falava de natureza, de amor, de sorriso e de flor. Amparado pela obra de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, João foi o responsável por desfazer um pouco dessa carga dramática.

"O amor na bossa nova é platônico. Ou abstrato: o compositor compara o amor à natureza, ao Rio de Janeiro. Ou é um xaveco”, diz o cantor e compositor Romulo Fróes. “Nesse último caso, a bossa nova só seguiu um caminho que o Noel Rosa já usava. A letra de ‘Três apitos’, por exemplo, é uma cantada explícita que o Noel dá na operária da fábrica. Ele vai pra porta encontrar com ela na saída. Na bossa nova, só muda o cenário do xaveco para o litoral.” Romulo diz que, hoje e sempre, o rescaldo do amor – brigas, ciúme, separação – é a melhor gasolina para a criação artística. “Quando você está amando plenamente, tem mais o que fazer do que ficar inventando canções”, ri.

 

"Estou lhe mostrando a porta da rua pra que você saia sem eu lhe bater" Judiaria, Lupicínio Rodrigues

 

“A bossa nova não mudou só a maneira de tratar o amor – que, de fato, ficou muito mais leve por causa dela. Mas mudou, principalmente, a maneira como esse recado é passado pelo cantor ao público. O estilo dos cantores era bastante diferente antes da transformação que João imprimiu na música brasileira. Eram vozes lindas, mas uma coisa muito pesada. João nos ensinou a amar e sofrer com elegância”, diz Gal Costa. Discípula de João desde a primeira vez que o ouviu no rádio, em 1958, Gal diz que a maneira contida de interpretação fundada na bossa nova não implica nenhuma perda na carga sentimental. Ao contrário, concorda com o dramaturgo Nelson Rodrigues quando ele diz que “a grande dor não se assoa”. Quem sofre mesmo, sofre calado.

"E como o ‘Retrato em branco e preto’ [de Tom Jobim e Chico Buarque] na interpretação do João Gilberto”, Gal compara. “Ali tem uma carga densa e profunda de dor e sofrimento. Mas ele coloca isso de uma forma muito sutil, o que só enriquece a canção. As pessoas não sacam muito por causa do jeito de ele cantar. No princípio, quando a tendência da música de amor era ser trágica, de fim de amor, do cara fodido, achavam até que as músicas que João cantava eram um pouco bobinhas. Mas logo elas se tornaram clássicos.”

“Bom-gostismo”

Clássicos, ao menos entre os universitários e artistas de classe média e alta, tornaram-se sinônimo de bom gosto. Quase tudo o que veio antes da revolução de João passou a ser considerado, imediatamente, cafonice. Coisa de gente velha e ultrapassada. Foi necessário que Caetano Veloso explodisse essa regra. Seu principal manifesto contra o “bom-gostismo” amoroso está no álbum Tropicália (1968). Ali, Caetano reedita “Coração materno”, um dos temas mais trágicos não só do repertório de Vicente Celestino, mas de toda a MPB, em interpretação dramática e derramada. A provocação era evidente.

“Hoje isso nem entra mais em questão”, diz Otto. “E um amor desesperado, como o da Ângela Ro Ro, não

significa que ela não tenha amado. Ao contrário. Ela chupou muito ali antes de tomar o pé na bunda. Valeu a pena. Ela está feliz com cada foda, cada trepada, cada linguada. Não tem essa de música de desamor. É tudo música de amor.” “Exatamente. O desamor também faz parte do amor”, concorda Pélico, cantor e compositor que dedica grande espaço em suas canções para falar de amor . “O natural é compor pela falta. Não ter alguma coisa é que te move – não só nas músicas de amor, mas também nas letras sociais.”

Para quase todo mundo. Não para Milton Nascimento, que, quando crooner, ganhava a vida cantando, em boates de Belo Horizonte, músicas de amor falido, como a audiência preferia. Quando se tornou compositor, no entanto, Milton foi tratar do amor por outros vieses. Suas músicas, em grande parte, falam de amores plenos – e do amor de amigo. “Aprendi com meus pais que existem vários outros tipos de amor e de paixão. Fui criado em um clima de amizade, com todos os meus amigos brincando na sala de casa – coisa que as mães deles não deixavam. Era sempre festa. Quando cresci e saí de casa para trabalhar, continuei procurando por esse tipo de sentimento. E foi essa procura que sempre me movimentou”, diz Milton.

 

"Ela há de rolar como as pedras que rolam na estrada" Vingança, Lupicínio Rodrigues

 

Hoje um artista reconhecido no mundo inteiro, Milton começou a fazer canções a partir de uma sessão de cinema. Morava em Belo Horizonte, meados dos anos 1960, e foi ver Jules e Jim, do diretor francês François Truffaut, com o amigo Márcio Borges. Repetiriam a sessão várias vezes. “Nunca tinha visto uma história de amizade tão bonita. Voltando para casa, já combinei com ele: ‘Vamos fazer música, você vai ser meu parceiro’. Naquele mesmo dia, fizemos três: ‘Passo do amor’ [que, depois, com outra letra, se chamaria ‘Novena’ ], ‘Gira, girou’ e ‘Crença’. Todas por causa daquele filme. Daquela história de amor.” Por acaso ou não, essas três primeiras parcerias de Milton com Márcio contêm a palavra “amor” nas respectivas narrativas. E, em nenhuma delas, o final é exatamente feliz.

Músicos e entendedores do assunto fazem um top 10 “canções de desamor”:

Gal Costa: “Alguém me disse” (Evaldo Gouveia e Jair Amorim)

Milton Nascimento: “Se alguém telefonar” (Jair Amorim e Alcyr Pires Vermelho)

Pélico: “Atiraste uma pedra” (Herivelto Martins e David Nasser)

Otto: “Vingança” (Lupicínio Rodrigues)

Céu: “As canções que você fez pra mim” (Roberto e Erasmo Carlos)

Roberta Martinelli: “Judiaria” (Lupicínio Rodrigues)

Helio Flanders: “Trocando em miúdos” (Francis Hime e Chico Buarque)

Karine Carvalho: “6 minutos” (Otto)

Romulo Fróes: “Pois é” (Tom Jobim e Chico Buarque)

Rodrigo Faour: “Nunca” (Lupicínio Rodrigues)

 

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